Cape Town está tranquila e quase deserta, neste feriado de 16 de junho – o Youth Day. 35 anos atrás, a maior das townships de Johanesburgo, Soweto, testemunhou o massacre de suas crianças e adolescentes. Aqueles que sobreviveram a essa semana de horror convivem hoje com as sequelas da brutalidade que a vida lhes ofereceu: cegueira, paralisia, desastre psicológico. Os que não sobreviveram deixaram para trás os que ainda olham por eles e os choram.
Neste 16 de junho algumas lojas estão abertas, outras ficam fechadas. Aqui, cada regra encontra na esquina o seu contrário. A caminho do District Six, imensa região do centro da cidade com sua própria história de arbitrariedade, injustiça e destruição, um grupo movimenta-se ao longo da principal avenida. Andam rápido, todos. Corremos atrás.
Mulheres de sorrisos e corpos amplos, cabeças coloridas protegidas do vento, olhos despertos prontos a fazer todo seu corpo reverberar com seu riso, mesmo que lhes sobrem motivos para o contrário. Homens cansados, mas dispostos a andar.
Este é parte do grupo ligado à organização Khulumani, vítimas e sobreviventes das décadas de apartheid. Esperam ser incluídos entre aqueles que têm direito às reparações reconhecidas pelo governo da África do Sul. Perderam maridos e mulheres, filhos e filhas, netos e netas, irmãos e irmãs, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas. Perderam, nas suas palavras, as próprias vidas, e não têm tempo para recuperá-las – precisam da sua dignidade roubada, e o apoio financeiro é a porta de entrada num mundo que lhes foi negado e roubado durante anos.
Juntam-se aos poucos, mas com rapidez. A cadeia montanhosa que rodeia a cidade, a Table Mountain, ameaça chuva ao longe, mas os guarda chuvas estão a postos. Não são as ameaças dos céus que estas pessoas temem – na verdade, não temem mais nada, porque não têm mais nada a perder.
A língua Xhosa ouve-se de todas as bocas, bem mais forte do que o inglês ou o africaans. Nos cartazes rudimentares, e sobretudo nas canções que as mulheres começam e que nunca mais terminam, é a presença dos sons dessa que é uma das línguas nacionais que convida a cantar junto com as demais vozes. Todos, sem exceção, cantam, explorando as possibilidades de segundas e terceiras vozes, sons guturais que transmitem urgência, lábios em explosões sonoras.
As mulheres cantam, e agora é impossível virar as costas ir embora. Como um feitiço, o ritmo contagia o corpo, os pés não querem parar, o balanço acontece sem querer. A dor que existe por trás de cada alegria reveste-se de bom humor e simpatia, da alegre musicalidade africana que não é só feita de sons mas também de movimentos. Há muito espaço para a dor no meio do canto, mas é uma dor que se dança e se exorciza.
De repente, ao meu lado, a memória ensombrece um rosto, como se fosse um fantasma que voasse por entre nós, fragmento da história do apartheid de cada um. É bom que o faça, porque é preciso que a memória seja reconstruída, percebida, resignificada, para que todos sejamos pessoas inteiras mais uma vez.
Mas foi só um lapso: a alegria retorna, no rosto que segura o cartaz que diz ao governo “estamos morrendo agora – respondam-nos, por favor”.
Cape Town engana, assim como o fazem as grandes cidades da África do Sul – quem não se dirigir às fronteiras que ainda dividem os mundos em cores, ficará de fora das lições vivas da história. Estas pessoas, caminhando tranquilamente no centro que agora lhes repertence, passaram uma hora nos vagões de um trem de subúrbio para chegar até aqui. Muitas vivem em Kayelitsha, a próxima parada do nosso roteiro. Por enquanto, parece que estamos no caminho certo.
Respostas de 4
Estou sem palavras!
oh Ana! cantora de todas as vozes, de todos os sons de todas as dores!!!
e de todas as esperanças
Demais Ana.. estou emocionada e ao mesmo tempo refletindo sobre o tamanho do sofrimento, chorei.
Thanks,Ana! Really touching… with you there all the time. Love U in Africa too!
Neca Terra