Entre Uche e eu

Hoje parece um daqueles dias que não querem corresponder-se comigo nesta língua que falo – por isso, talvez, meu amigo Uche venha em meu socorro. Conheço-o há poucos meses, e nosso encontro reveste-se de muitas das palavras da sua língua, o igbo, porque foi por causa dela que cheguei até seu endereço de skype. Faço-lhe imensas perguntas, tudo quero saber, e, a certo momento, Uche sugere que eu faça o curso de igbo online que um amigo dele desenvolveu. Decido parar de perguntar, talvez o aborreça, penso, e seja uma maneira educada que usa para me dispensar o resto das perguntas. Agrega que isso seria bom, claro, antes de viajar para seu país, como se fosse algo simples e óbvio de acontecer na minha vida, tanto aprender o igbo quanto ir passear à Nigéria… Continuo interessada na língua, mas já aprendê-la, não sei, o igbo é uma língua tonal, e línguas tonais são um desafio à parte, mesmo sendo maioria entre todas as que fala a humanidade. (Por exemplo, o chinês: usa a mesma construção, Wo yao mai yi bai bao, por exemplo, para dizer coisas tão distintas quanto “eu quero comprar um leopardo branco” ou “eu quero vender cem castelos”. A diferença está na entonação que se dá a cada palavra. Para nós, que fazemos parte da humanidade falante de línguas não-tonais, não é muito fácil.)
Uche vive nos Estados Unidos. Nasceu no sudeste da Nigéria, região que muitos de nós lembraremos melhor pelo nome de Biafra. Uche é o único sobrevivente de uma grande família, despedaçada pelo genocídio ímpar que presenciou. É só isso que me escreve, e eu quase posso tocar a espessura quente desse silêncio impenetrável em que ficamos. Retorno inevitavelmente às imagens que chocaram o mundo na década de 70, e me fizeram querer atravessar o estreito de Gibraltar a nado que fosse, como se tivesse o poder de mudar alguma coisa. Sei que seu silêncio me adverte do incômodo de saber que os outros sabem de nós e nos reconhecem apenas pelas atrocidades, os descalabros, as infâmias. Por isso, nada lhe digo do que me passa pelos olhos quando ele diz “Biafra”. A minha ignorância é obviamente imensa e tão densa quanto este silêncio que se fez.
A comunicação à distância é um perigo para palavras esparsas – e o Uche usa poucas palavras. Quando lhe sugiro que talvez pudéssemos conversar com câmera e microfone, ou ao menos microfone, tanta vontade tenho de ouvir a sua voz modulando os sons do igbo, diz-me que não, que não gosta que o vejam ou ouçam à distância.
Demoro para lhe responder qualquer coisa, porque também eu não gosto que me vejam à distância, antes prefiro a proximidade táctil, o calor da pele, os olhos dentro dos olhos. Preocupado com o meu silêncio, digita com lentidão, escrevendo e apagando muitas vezes, como se pensasse e pensasse e pensasse, sem saber que a máquina trai aos meus olhos o seu pensar. Aos poucos, posso ler: “se escrevemos sem nos vermos, é como se estivéssemos mais perto, tal é o poder da palavra”. E de fato é a palavra que me leva até ele e me traz a sua pessoa, que nunca verei realmente como posso ver através das palavras que escolhe, creio que algumas a medo, com receio de ser mal interpretado. Pensa em sua própria língua, imagino, parece procurar o tom correto no agreste e gutural saxônico.
O que mais me aproxima de Uche é que ele escreve pelos mesmos básicos motivos que eu: sobrevive à custa de palavras ao peso do pior dos dias, revigora-se da decepção do alheio com cada letra que desenha no espaço aberto da escrita, o único verdadeiramente livre que ocupa na vida. Descubro, através do Uche que me escreve, que é a consciência de cada letra que escrevo que me faz gostar de escrever – porque diz-se muito mais do que se diz ao falar, porque a letra que se desenha sobrevive à voz que morre, porque é um buscar da eternidade, da verdade, do outro em nós.
Ao longo dos dias, o Biafra que me habita incorporou a imagem deste Uche feito só de palavras escritas, sem som, sem imagem, experiência de língua pura ao longo de compridas e simples madrugadas. Esse meu Biafra particular ficou maior e mais luminoso, como se uma entonação diferente o emoldurasse, que não ouço com os ouvidos de sempre. Mesmo mantendo a fome, o descaso, a indiferença, a agonia lenta, em algum lugar as  coisas brilham.

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