A cidade nova XII – o abacateiro de seu Ambrósio

Até agora, só conhecia seu Ambrósio por dentro. Por dentro do seu corpo debilitado por uma sequência de pneumonias mal curadas. Os muitos raios-x que encontrei no armário de um dos quartos aqui de casa mostram-me as suas costelas estreitas, os finíssimos véus brancos em alguns pontos dos seus pulmões. Passei um bom tempo olhando-o, assim que cheguei, tentando relacionar-me com essa pessoa ida.
Seu Ambrósio morava na casa onde eu moro. Dona S, aqui na casa do lado, já me contou que era homem de gostar de árvores, uma espécie que ela parece não entender muito bem. Duas casas mais abaixo, dona F diz-me que seu Ambrósio vivia plantando mudas na calçada, que alguém arrancava durante a noite. E ela faz aquela cara muito óbvia de que desconfia, justamente, de dona S, tamanha a aversão que tem a folhas sujando a calçada. “Como se folhas fossem sujeira, nunca vi tanta vontade de limpeza”, completa a desconsolada senhora, que me parou na calçada para saber, preocupada, se eu cortaria ou não o abacateiro do quintal. E abre um sorriso quando lhe digo que o quintal foi justamente o que me conquistou, com seu abacateiro de mais de 50 anos.

Seu Ambrósio era enfermeiro; trabalhou muitos anos no posto do INSS de Araraquara. Fazendo curativos e coisas assim, pelo que me contou dona S. No dia em que fecharam o ambulatório, não teve dúvidas: abriu a sua casa para quem precisasse dos curativos, sem cobrar nada. Ocupado só com a necessidade do outro. É aí, creio, que reside a diferença entre preocupar-se e ocupar-se: na ação. Naquilo que migra do pensamento e se transforma em visibilidade. Acho que eu andava à procura do coração de seu Ambrósio por entre as costelas radiografadas.

Sua esposa, dona Djanira, pertencia à Assembleia de Deus. Levantava-se todos os dias uma hora antes do necessário (aos olhos do mundo) porque havia muita gente no mundo que precisava da oração dela, e ela usava pelo menos uma hora para essa tarefa, enumerando essas pessoas e lançando seus nomes na direção de Deus, para que ele as amparasse na sua inextinguível glória.

É Jane quem me conta tudo isso de olhos cheios de lágrimas. Dona Djanira era tia dela. Toca a campainha de casa porque precisa cobrar a laje que me vendeu, e eu esqueci de pagar. A laje que agora cobre o quartinho onde dona Djanira rezava, percebo. Todos os dias, sem um sequer de descanso. Uma vizinha de fundos adoeceu, certa vez, e dona Djanira, aflita por ajudar, fazia faxina na casa toda semana. Queriam pagar-lhe, mas ela sorria e dizia que era um serviço que ela fazia melhor só pelo prazer de ser útil ao outro., mesmo que a artrose de seus dedos lhe doesse à noite. “Ah”, dizia, “Ambrósio cuida disso pra mim.” E sorria, consigo até imaginar que um sorriso alquebrado de dentes. Jane nem quer entrar, diz que vai emocionar-se muito, e precisa trabalhar o dia todo. Fica feliz só em saber que eu gosto de saber. E eu prometo-lhe uma crônica – promessa que ela não entende, mas assim mesmo é o que posso fazer.
Entrego-lhe os cheques de pagamento e de repente dá-me um abraço, enxugando antes as lágrimas com as costas da mão. Diz-me que com certeza serei feliz nessa casa, porque durante décadas e décadas abrigou duas pessoas que faziam o bem sem olhar a quem, e sem querer ter retribuição. Não era nem questão de  esperar retribuição, mas de querer mesmo.

Aos poucos vou reconstruindo a imagem desse casal que deixou tantas marcas pela casa, e que se entranham na minha vida de pouco em pouco sem motivo aparente. Olho o abacateiro de seu Ambrósio, e as dúzias de abacates que caem prodigamente ao chão todos os dias. Certamente seriam outros, estes dois velhos, e não aquilo que ouço deles  agora, e é bom pensar que as marcas que deixaram no mundo fazem jus àquilo que havia de bondade neles. Que os tropeços, os desajustes, as torpezas ficaram no passado que se esquece, e que sobraram os dias bons, os gestos bonitos, as formas gentis de se ser humano. Coisas que inspiram a semana que começa.

Respostas de 9

  1. O nome dele já indica, deveria ser um doce de pessoa e sua amorosa cronica lhe fez jus, um autentico lenitivo! Que ele e Djanira velem pelo seu espaço.

  2. Entre outras identidades, mais esta. Aqui em casa tb mora um belo e antigo abacateiro, ali no quintal.Generosamente, ele despenca seus frutos em abundância,convidando a gente a compartilhar (a família é pequena e não dá conta!). A cada um que vem, ofereço um,dois ou mais.
    E sabe que tem gente que educadamente agradece mas não quer? Isso é incrível!A gente sempre tinha que aceitar um presente desses,não é?
    Afinal, alguém plantou um dia (há anos) pensando nisso…pé de fruta é passaporte pra cultivar mais fruta e mais amizade (melhor fruto que a gente colhe entre nós humanos!).
    Bjca com saudade e LUZ,
    Neca Terra

  3. Ana, que lindas cronicas! vc troxe vida aquela radiografia esquecida no armario! Ontem passeando perto do rio havia uma plaquinha numa arvore que dizia " ouço estorias de pescarias" , te vejo em varias banquinhas pelas Araraquaras! beijos de NY. Ivette

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