Batem-me à porta duas mortes, no dia de hoje. Distantes e diferentes, unidas num repentino quase a mesma hora. Nesse céu de equinócio, pode ser que se encontrem, pode ser que se auxiliem, nesse passeio pelo céu que as une naquilo que as difere.
Ao António, de nome completo Ramos Rosa, guardo-lhe a inspiração da palavra que aspira ao silêncio. Recorto, nesta noite que escolho como réquiem, fagulhas da sua poesia para que me acompanhem no seu acompanhar. É ele o poeta que diz
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Apago as luzes da noite para escutar-lhe melhor as palavras. Espalham-se sobre mim como poeira dele mesmo.
Escrevo para que se levantem os pássaros de areia
e ao pulverizarem-se espalhem a poeira do seu desaparecimento
E penso no Julião, esse Julio de sobrenome da Silva tão comum, esse homem de 51 anos que vi diante de mim sonhando com a caranguejada que prepararia para a família assim que fosse de novo um homem livre; esse homem grande, de sorriso largo e gesto acolhedor, sobrante de capacidade de ver na desgraça sua o riso à espera, o chiste certeiro; esse homem perdido dentro da incompreensão do mundo em que se planta, como árvore em busca do sol que nunca chega.
Julião temia, sem talvez perceber ao certo, a saída da prisão. Temia o dia da soltura, o enfrentar do mesmo mundo de antes reconhecendo-se outro. Quem perceberia a mudança? Quem o veria diferente? Talvez se perguntasse à noite. Retardou o quanto pôde a sua soltura. Até chegar o dia de sair, mesmo dia em que, certeira e rápida, encontrou a morte no virar da esquina.
Espero, nesta noite estrelada, que a sua ida tenha sido breve, que o seu riso tenha ecoado nos espaços siderais, que os anjos todos do céu estejam sentados à sua volta, gargalhando de alegria com o contador de piadas que acaba de chegar; e que se encontre à porta do céu sendo reconhecido pelos passos que conseguiu dar. E quem sabe António esteja também sentado à mesma porta, esperando a sua vez, e talvez um se sente ao lado do outro, e Julião se lembre dos poemas que lemos juntos, e mesmo que nenhum deles seja de António, que um reconheça no olhar do outro a humanidade silenciosa que só a palavra poesia tornada silêncio consegue conter.
Salve, António! Salve, Julião!