A quatro mãos

“Instável, mas com coragem”, diz-me o amigo ao longe. Quase posso ver-lhe a alma inteira à escuta, na beira do caminho, recolhida atrás das pedras das escarpas, sempre à espreita, esperando ver se a ponte soçobra debaixo do peso das rodas de cada dia. 
Talvez seja mais fácil ter coragem ancorado em algum lugar, penso. E escrevo-lhe. Ele responde, lá no longe onde está: “o bom da âncora é que o barco pode deslizar um tanto…”. Sem perder o foco, digo-lhe eu, o foco de onde está a rede que contém o peixe que alimenta o povo – mas eu queria mesmo dizer era da rede que contém o peixe que alimenta a sua alma. Mas fiquei tímida (inibida, se usasse as palavras que ele gosta de usar), mudei o fim, talvez fosse intimidade demais. Como é que se pode ter certeza de coisas assim? Ando receosa das palavras que escrevo aos outros.
Agora, aqui, ele fica sabendo. Que com ancoragem a coragem da alma se fortalece, nas âncoras em que cada um pode se segurar, cordas grossas e seguras onde se apoiar e descansar o peso quando a própria coragem faltar, manca como são todas as coragens quando o dia se põe. Âncoras em que confiar quando a maré levar o peixe pra longe, certo de lá estar quando ela de volta o trouxer. Âncoras que se agarram ao chão que não se vê, tão turvas são as águas que parece não haver mais lugar onde pisar sem cair. Âncoras que parecem nem ter peso quando descem ao fundo do mar, levando consigo a própria carga, trazendo consigo a vida alheia.
“Mas chega o dia em que se deve tirar a âncora, e retornar com as ondas à praia”, diz ele, quase parece que me ouviu escrever nesta tela que não vê. A coragem que emerge, é ela quem fala através dos seus dedos que escrevem. Digo-lhe que não se esqueça de guardar a âncora dentro do barco. Porque sei o quanto a coragem se camufla e decide dormir quando menos se espera – quando menos se precisa. Assim:
Atravessa-se uma ponte, com a disposição certeira e a mente lúcida, a vida toda em forma de brilho, nítida e óbvia. Mas há uma curva, uma curva dentro do peito, tão igual à curva do braço de rio que revive na praia, tão do mesmo tom de verde dos lagos que não se mexem há muito. E a curva move-se, e num movimento de quem recolhe o lanço do trigo que afinal não se semeia, a curva recolhe a coragem daquilo que era tão certo, tão claro, tão firme. E aí a âncora. Aí retorna a âncora. Como um porto seguro. 
Há uma gaivota que veio entretanto sentar-se-lhe em cima – meu avô diria que para que me lembre de que há sempre quem nos cobice a fortuna (ele não gostava desses pássaros que roubam peixe aos pescadores). E o amigo diz “gaivota”; e a palavra primeiro não lhe desce, diz, agarrou-se ao cordame do barco, aos seus mastros, aos remos que usa para se manter à tona. E talvez porque lhe pressinta o tom enganador, a palavra não lhe desce, e a gaivota quase levanta voo. Mas não: meu amigo é um poeta em estado latente, e a gaivota dele vai na frente e a traineira atrás, pescadores de binóculo atrás da ave que sabe em que ondas se escondem os peixes. E assim a gaivota fica onde está, ornamento a preto e branco de uma âncora que permanece firme, ancorada no coração desse amigo que já foi, já dorme o sono dos justos e dos corajosos. Amanhã, que é sempre outro dia, lerá.

4 respostas

  1. Imaginei uma interessante visão pedagógica para esse seu escrito…"função âncora", "função porto"… eu sei muito bem do que você fala…tenho sido âncora…tenho sido porto…

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