Além da sobrevivência

Araraquara, sábado, 22h15. À saída da sessão de “O renascimento do parto”, um grupo de mulheres jovens, bem vestidas e alimentadas, discute o filme. Mais ou menos na seguinte direção: – “Ah, mas também que firulas, não? O que é que tem o bebê ficar longe da mãe logo depois de nascer, só um pouquinho? Não vai ter a vida inteira pela frente? Não sei pra que ser tão radical…”.

Essa história de ser rotulado de radical eu conheço. Meu mapa astral diz. A vida diz. As pessoas em volta dizem. Mas como assim não ser radical? Se não formos radicais a respeito daquilo que respeitamos e consideramos, vamos ser o que? Sempre contemporizadores? Tem coisa que é difícil de contemporizar. As certezas vão mudando de lugar, confirmando o que dizia minha avó: “vais ver como quando envelheceres a vida torna-se relativa”. Pois sim, é verdade, é uma graça envelhecer e ver as certezas ruírem. Só que outras constroem-se em seu lugar, lado a lado com as dos outros. Tá tudo muito certo.
Sinto um incômodo no discurso que vai se consolidando em torno do parto normal/natural/humanizado. Muita nomenclatura para variantes de algo muito, mas muito simples. É de se desconfiar. Esse incômodo chama-se sensação de ser engolido a contragosto. Chama-se ser cooptado por um sistema que consegue inacreditavelmente transformar tudo em seu produto. Em mercado. Em matéria de troca. Em uso. O incômodo chama-se ver o sistema assumir contornos de gente humana, mas sem recheio. Um mundo de convexos sem concavidades. Um mundo em que, em vez de nos tornarmos humanos, viramos profissionais.
Tenho certos problemas com a palavra profissionalizar. Já vi situações únicas e espontâneas sucumbirem ao poder do discurso profissionalizante. Pessoas entregues e capazes, cheias de energia e vida pra dar, aniquiladas sem dó nem respeito ao peso daquilo que as torna, muito de repente e sem defesa, incapazes e duvidosas. Nada contra sermos profissionais no que fazemos, muito pelo contrário: o problema está em considerarmos (e tantas vezes fazemos) que alguém, que não nós, fará direito o que nós tentamos mas, por defeito de sermos quem somos e o que somos, não conseguimos. Ou quase conseguimos, mas de repente é preciso profissionalizar. E só nos resta sobreviver.
Foi assim com o atendimento ao parto. Tínhamos as parteiras. E temos, mas a que custo e luta delas mesmas. Pessoas que primavam e primam pela simplicidade e pelo mistério das suas mãos, doação em estado puro e bruto, porque era e é delas a tarefa sublime de estar junto a quem atravessa o umbral da vida. Mulheres de palavras certas. Mulheres de conhecimento atávico. 
Tínhamos os/as obstetras. Que, apesar da sua formação compartimentalizada e redutora, buscavam um sentido existencial para o momento de nascer. Meu avô, que era médico, e médico rural, falava pouco dos partos que atendia, e eu acho que era por respeito. Por respeito ao que não conhece explicação. Embora ele falasse pouco a respeito de qualquer coisa com a criança pequena que eu era. Gerações de médicos foram se profissionalizando, e hoje temos profissionais extremamente hábeis e competentes no manejo do bisturi.
Talvez por falta de outra opção num primeiro momento, e depois por convicção (variante de radicalismo), meus terceiro, quatro, quinto, sexto e sétimo partos foram atendidos por médicos obstetras convencionais. Alopatas. Nunca tinham feito parto em casa; alguns, os bons de cesárea, poucos partos normais tinham feito. Ajudaram-nos a minha experiência bem sucedida de dois partos anteriores e a minha certeza (radicalismo/convicção) de que é claro que meus filhos nasceriam em casa. Com ou sem os médicos. Aceitaram o desafio, inclusive o da minha outra certeza/radicalismo/convicção de que há que pagar-se um preço justo. Salário mínimo, no país em que vivemos, é um preço justo.
Foi um alumbramento coletivo, cada um desses partos. Tive a felicidade imensa, dessas que vão muito além da pura sobrevivência, de ver não só nascerem meus filhos, mas de presenciar o nascimento de médicos de parto em casa. Isso não tem preço.
É claro que houve senões. Sempre há. É claro que ouvi “anda, faz força” na hora em que não deveria ouvir nada. Que houve exames de toque desnecessários. Apreensões em demasia. Olhares de dúvida que poderiam ter travado qualquer dilatação, aquelas palavrinhas mornas que poderiam desmontar tudo que não fosse certeza/convicção/radicalismo. Sem essas três palavrinhas, capaz que houvesse desistências, de ambas as partes.
Gostando como gosto de parir, acompanhar outras mulheres à beira de dar vida foi uma consequência natural. Como amiga, como vizinha, como mulher. Quis ser parteira. Vi surgirem as doulas. Quis ser uma. Comecei o curso de enfermagem com o olho na enfermagem obstétrica. Ou seja: quis profissionalizar uma atuação que corre pelas minhas veias.
Não avancei nessa direção. O cheiro de mercado, a troca financeira, o fim da explosão pura de amor em forma de doação levou-me para longe, enquanto outras coisas surgiam na vida. Por isso, há poucos dias, quando me perguntavam: “você seria a minha doula?”, eu engoli em seco antes de responder que posso ser a amiga, a vizinha, a mulher, a confidente, a irmã, a que cuida das crianças irmãs de quem vai nascer, a que faz chá e atende o telefone. A pessoa que pode estar ao seu lado e acompanhá-la nesse trabalho divino, com aquilo que tive o privilégio de viver e aprender. Mas não posso ser doula, porque não posso dar nome de profissão ao que sinto tarefa de vida. Admiro as mulheres que acompanham outras mulheres assumindo-se como doulas, admiro-lhes a coragem e a garra; quisera eu, há quase três décadas atrás, ter encontrado algumas delas. Admiro esse movimento genial e pulsante de mulheres e homens guerreiros que se erguem com valentia contra a ditadura do sistema. Mas assim, meio recolhida como me sinto, me aflijo com o cheiro de sistema em tudo isso.
Ingênua? Radical? Naif? Pode ser. É mais uma questão de além-sobrevivência. Uma questão de que a vida não fique ao rés-do-chão, no lugar comum das coisas comuns, na falta de significado, de força, de querer olhar a vida de frente e dialogar com ela. Questão muito pessoal, sei disso. Mas com os tons da urgência que se querem compartilhados.

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