Cada morte que se aproxima reinventa-me todas as mortes que persistem à minha volta. Cada um que parte, e que de alguma forma está próximo, reedita-me e aos que me deixaram sem saber o caminho de volta. Permitem que reconheça as pedras do caminho da ida, aquele mesmo que quando me chama se parece tanto com o da vinda; permitem-me sentir a humanidade latente atrás da porta de cada partida.
A mãe de meu amigo René morreu nesta semana, e eu sinto essa morte perto de mim e ao René a meu lado. Sei da força com que cuidou dela ao longo dos anos, acomodando no seu cotidiano uma doença difícil de definir e mais ainda de cuidar, com a consciência e entrega que eu mesma queria ter, ao lidar com esse processo que tenuemente nos une. Imagino-o agora a seu lado, velando-a no fim da sua luz, a caminho da seguinte. O René tem uma relação com o mundo dos espíritos que não tem rótulo nem nome, mas que o afirma e firma na terra diariamente, sem que diga nada.
O René não sabe disso (e há de saber por este meio), mas a sua significativa magreza, o seu sorriso e a sua ternura paciente serviram-me de exemplo neste pouco tempo em que nos conhecemos. A serenidade que emana, diante de um quadro que a mim me desespera ao longe, torna os meus momentos de preocupação mais leves, e por eles me decido a pegar num telefone e ir à busca de notícias do outro lado do mar.
O René não sabe disso (embora saiba muitas coisas, a maioria mais importante), mas a morte está à nossa volta o tempo todo, e permanece depois que todos se vão, e é a única que nos espreita a cada momento em que nos matamos lentamente naquilo que não nos permitimos. A morte não está no fim do caminho, mas a cada curva e a cada reta, e atinge-nos em cada discussão, em cada olhar perdido, a cada vez em que ignoramos os pequenos seres que atravessam o nosso andar. Porque a morte é a nossa própria essência, e mais estamos mortos do que vivos quando nos olharmos no espelho e vemos a transparência do espaço que existe entre nós mesmos e o reflexo da nossa pele.
Nada disso é a nossa alma, nada disso somos nós mesmos, porque estamos mais do lado de lá do que de cá, porque a cada dia nos matamos internamente para que outros possam renascer, e, para que outros possam morrer a cada dia, renascemos em nossa morte.
Um pouco como me sinto à beira da morte neste instante, reduzindo a minha noite de sono para estar mais perto de quem vela, ressuscitada nas palavras que quero deixar para este mesmo René que sei dormir de exaustão, na dúvida cruel do dever cumprido ou não, no sentimento esparso de algo ter ficado, porque sempre fica e de nada nos adianta querer atingir tudo, porque somos muito menos do que nada.
Ou um pouco como me sinto à beira da vida, quando penso em cada morte a meu lado, significando-me todos os dias, mantendo-me de pé à espera da próxima, vendo as suas costas e a sua sombra caminhando em direção ao futuro.