Atrás dos óculos, via a vitrine vazia. Um ponto, o caos, a vista embaçada. Atrás dos óculos, via as lágrimas como pérolas escuras. Escorrem-lhe pelo rosto vincado e laceram-lhe a pele, numa abertura lenta de ruínas incandescentes por onde se esgueira a memória.
Atrás dos óculos, via a fuga, com os olhos fechados até às comissuras dos lábios. Uma sentinela apagada no cimo do farol, a plena escuridão, o frio, o afogamento solitário.
Atrás dos óculos, via a vergonha de não ver o óbvio, de perder as lentes e não entender, de procurar e não ver o sorriso de hiena no lábio fino, a alma esgarçada sem conseguir se ver inteira por dentro. Tudo aos pedaços, aos bocados.
Atrás dos óculos, via um fio feito rio avolumado, as margens muitas que contêm nadas. Via o abismo de um si mesmo despreparado. Via as garras, o vento, a imundície da neve derretida à noite na calçada da cidade grande.
Ao sair, muniu-se de ouro. Jurou a si mesma, diante do espelho que lhe cortava as ruas, preencher-se com o mais puro e valioso ouro, juntando os buracos até se fazerem tela. Nem o que lhe roubaram faria falta. Muito melhor ser inteira pela segunda vez do que nunca ter se sabido pedaços.