De touros

Hoje já é dia 15 de agosto na minha cidade, Caldas da Rainha. Dia de aniversário, 524 anos salvo erro, dia de tourada e feira cigana. Lamento não saber se ambas continuarão como 30 anos atrás, para dar-lhes notícias atualizadas dos eventos, e desconfio que, pelo que vejo em outras passagens de tempo, devam ter mudado. Só que, como o que vive na memória, ensinou-me meu avô, está vivo de qualquer forma, posso dedicar-me a escavações aqui nas minhas gavetas internas, cheias de ligações entre si. (Por pura curiosidade, informo-me pela Gazeta das Caldas, e descubro que realmente as coisas mudaram: os ciganos transformaram-se em “expositores”, mais de 250 neste ano!, e nem sinal das touradas, resquícios medievais portugueses, nesta edição de hoje. É possível que, como outras coisas de épocas menos felizes que a nossa, tenham caído em desuso.)

Não é que alguém da minha família fosse assim um entusiasta de touradas – a ala mais à esquerda, olhava de soslaio (e de forma silenciosa, porque o perigo rondava) para essa atividade ligada à mancha latifundiária do centro de Portugal; a ala à direita, que mesmo escassa sobrevivia nessa minha família, tinha uns contornos estranhos, em que, se de um lado abominavam esse costume bárbaro e ridículo, típico de povos sem coração, divertiam-se absurdamente na caça aos patos bravos que depois ninguém comia, quando lhes era o tempo. A mim, honestamente, nem uma coisa e nem a outra, mas às vezes lá ia com meu pai às touradas. As convicções políticas de meu pai bem tentavam, mas era difícil resistir a um convite para qualquer coisa que juntasse pessoas e desembocasse num restaurante, num bar, numa adega ou numa tasca qualquer. Além disso, creio que a ele sempre agradou fazer oposição a todas as alas da família, e a tourada era o ataque perfeito e simultâneo a todas elas, que se irritavam bravamente mal ele anunciava que “vou com a Aninhas aos touros, não se ponham com coisas…”. Considerando que qualquer tourada é ao final festejada numa tasca, não há vencedores nem vencidos (a não ser os touros), lá íamos. 15 de agosto então, dia de legítima “tourada à portuguesa”- era fatal.

Explico esse “à portuguesa”: não sei se resultado do domínio filipino sobre terras lusitanas, o certo é que a rivalidade entre Portugal e Espanha se estendeu, célere, à tauromaquia – a arte do toureio, mais antiga do que Cristo, pra quem é virgem no assunto, com as devidas desculpas àqueles que passem mal só de ver associada a palavra arte a tal costume; eu compreendo, e sou-lhes solidária, mas é que o tema de hoje calhou-me ser este…

Touradas, na Espanha, são brutais, sangrentas, violentas (diria alguém português, é claro); mata-se o touro na arena – aliás, assiste-se à sua morte, lenta, agonizante e deprimente. Lançam-se chapéus aos céus quando o touro cai, vitória absoluta da sagacidade do homem sobre a natureza bruta do bicho. Aproxima-se de um transe coletivo – silêncio na arena, quase que se ouve o resfolegar do touro lá dos últimos lugares. Não há toureiro que não deseje a morte pelos cornos de um touro, e um deles, ao saber que seu rival morrera dessa forma, declarou que “até nessa hora ele me venceu”.

A tourada à portuguesa mantém uns ritos entre o teatral e o circense. Boa parte dela é a cavalo, imperam cores, bandeiras, plumas, mastros pra cima e pra baixo, uma sensação de desfile bizarro de vestuário do século XVIII, estilo Luís XV. O touro lá sofre com as agulhadas, com a maldita capa vermelha que aos poucos lhe vai tingindo os olhos, até levá-lo ao delírio que o faz perder a cabeça e a vida. A morte consuma-se do lado de fora. O touro sai da arena andando, às vezes trôpego, junto com o gado manso que lá entra para arrastá-lo consigo.

Conta-se em Portugal com um elemento desconhecido em terras de Leão e Castela, que são os forcados: grupo de oito homens de peito aberto, nada de lanças, espadas, armas ou capas, para eles o touro é “à unha”. Entram na arena, apenas eles, comandados pelo seu cabo, que avança destacado, aos gritos, chamando nomes feios ao touro, provocando-o e chamando-o para o embate. Casaco bordado da cor que Camões dizia ser contente, e o verde que completa a bandeira nos barretes das cabeças. Numa dança ensaiada e repetida entra século sai século, o condutor agarra o touro pelos cornos, manobra perigosa em que vários já perderam a vida, o último agarra-lhe o rabo e ambos rodam; a multidão ora emudece, ora se entusiasma, pasma e sobressalta-se em uníssono quando os demais se agarram cada qual à sua porção de touro, e aos poucos o dominam, o fazem parar e o derrubam no chão, finalmente vencido. Os espectadores em roda chegam ao delírio, porque é esse o momento que todos aguardavam – um banquete estranho em que se serve a valentia e a coragem desses homens, vestidos como os camponeses daquelas mesmas terras onde se criam os touros e se matam os homens de fome.

Essas diferenças entre touradas portuguesas e espanholas provocavam-me na verdade pouco interesse. O máximo que eu conseguia absorver da Espanha toureira estava nos livros do Lorca, que eu insistia em decorar quando lhe estudei a vida e a morte, e até hoje cá estão, entre estas gavetas que de repente abri. A minha inquietação só fazia era crescer com aquele toureiro magro e esquálido – moreno de verde luna andando devagar e garboso, como queria o poeta espanhol enviado à morte por Franco, mas ainda assim esquálido, agarrado à capa vermelha de um lado pro outro, o pobre do touro tonto já de tantas voltas, um arrastar-se em comum inútil e infeliz. A demora da espada, fincada enfim entre os olhos na Espanha, ou da bandarilha espetada no lombo em Portugal, afundava-me em oceanos de desespero interno, pelas coisas que eu não suporto e se arrastam, se consomem, se indefinem.

A experiência tauromáquica deixou-me um travo amargo que infelizmente recupero sempre que a minha vida se depara com um touro diante de mim que não posso enfrentar, porque não sou seu toureiro, a capa está em mãos alheias, e estas se divertem lançando-a de um lado ao outro, e ao final eu já não sei se sou espectador se o próprio touro, tão rapidamente me lanço à arena e me desejo perfurada até o fim. Mas nem um e nem outro. Logo me levanto e coloco meu barrete, e junto com o cabo que mantenho à minha esquerda, sigo em direção ao touro que me olha fixamente, olhos despertos na valentia que impede que as voltas indignas da arena se materializem pelo caminho.

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