Ora bem. Depois do post “Ser grato ou obrigado?” pedem-me à distância que escreva algo sobre desapego. Perguntam-me se me sinto desapegada. Se pratico o desapego. Se consigo.
Francamente, nem tento. Não posso. Dentro de mim vive um apego a tudo o que amo. Um apego que (tento) não me machuque quando decide insinuar-se por entre os muitos laços do ego, segredando-me que, se amo, e se me apego, terei. Bobagem. Apenas serei. Tento apegar-me dentro dos domínios da luz, e que essa luz envolva os demais com todas as vibrações que posso enviar de longe porque, afinal, estou apegada – e, por isso, trago o outro dentro de mim a cada instante, faz parte das fibras da minha alma.
A raiz primeira de desapego (antes da junção com o prefixo des-, que significa sempre o negativo daquilo que se diz depois), é apego; este, por sua vez, deriva da palavra pegar – picare em latim: trazer consigo, ter em si e (claro) pegar. Portanto: pratico o apego porque ele me faz trazer comigo tudo aquilo que amo. Graças a esse “a” agregado, o que estava bom fica melhor ainda: trago quem amo junto em mim. A toda hora, a todo momento, em todo lugar. E porque não quero desapegar-me, o que amo cria casa em mim. Habita-me. Entranha-se. Elabora-me. Decifra-me. Quem se apega, chega mais perto do centro.
O impulso de desapegar-se, neste poder etimológico que lhe outorgo, encontra-se de braços dados com a decisão (que vejo ao meu redor com frequência) de não se entregar, de manter a individualidade, de não se perder no outro, manter o controle, ser dono de seus atos. Mas sem entrega, sem comunhão de indivíduos, sem o se perder – como se achar, e como achar o outro?!
A esse amigo querido que de longe se pergunta sobre o desapego, o que posso oferecer é o meu desprendimento. O mesmo des- que negativa, junto ao prehendere latino. Prender significa também pegar, mas com uma pequena imensa diferença: prehendere é agarrar. E agarrar guarda dentro de si, escondida entre duas distraídas letras, uma garra. Uma coisa é pegar algo que chega à sua mão. Outra, diferente, é agarrar. É ser presa. É estar-se preso.
Pego o amor que me dão, e me apego. Quero apegar-me. É uma decisão, esse apego, porque amo o que amo e mantenho-o perto e dentro comigo. Amor não é agarrável. Amor é liberdade em expansão. É tempo fora do tempo. Espaço fora do espaço. Se tento agarrar, ele escapa. Amor só sobrevive ao apego. É o lugar mágico onde se nutre, cresce, transborda – amor é coisa que precisa de transbordamento, sejam lágrimas nos olhos, sejam bênçãos no mundo.
Agarrar responde ainda por ações polares: aprisionar e afeiçoar-se. Se uma palavra pode, ao mesmo tempo, aprisionar e criar afeição, é melhor procurar outro caminho. Apegar-se sem as garras longas que prendem. Por isso, pratico o desprendimento. Deixo solto o que pertence a todos. Deixo solto o que pertence ao outro. Deixo solto o que pertence a mim. Mas dentro, neste lugar onde entram aqueles de passos leves e olhar atento, vivem apegados a mim todos os afetos do mundo.