Do latim

A etimologia sempre me interessou. Não necessariamente, ou logo de início, como ciência exata (que não é mesmo) ou como curiosidade histórica, mas mais como oceano de possibilidades e conexões misteriosas e ocultas entre nós e os que estiveram por aqui antes. A própria substância autônoma das palavras, ainda naquele estado de dicionário que lhes acusou Bandeira. Presenças e ausências alfabéticas que criam essas possibilidades de existências além dos nossos olhos.

Descobrir que “confraternizar” tinha uma ligação tão íntima com o perceber no outro um nosso irmão, e por isso é que meros encontros são momentos de alegria e regozijo nos braços da fraternidade, acompanhou-me assim que o latim entrou na minha vida. “Frater meus, alter ego” (meu irmão, outro eu) foi um bom tempo a missiva que circulava entre eu e meus fraternos amigos da altura.

Na verdade, um pouco depois. O latim apareceu-me antes, com uma das minhas tias, a que gostava das línguas mortas e até se parecia já naquele tempo com alguma delas. Aconteceu na voz de um belga morto em 1978, Jacques Brel. Tinha ele musicado a primeira declinação latina (Rosa rosa rosam/Rosae rosae rosa/Rosae rosae rosas/Rosarum rosis rosis
, numa letra da música sem coincidência exata com a declinação clássica), chamando-lhe, por entre isso que era o refrão, de “tango dos que farão a França de amanhã”.

Queria a minha tia introduzir-me dessa forma a todos os casos declinados da língua de Roma, mas eu fiquei-me durante anos na música de Brel, e ela acabou por se frustrar e, segundo disse, “ficas abandonada à própria sorte”. É bom saber que nessa altura nem estava eu ainda alfabetizada, como é que ia me interessar por decorar obscuras declinações latinas sem melodia anexa?

Anos depois, tive a sorte (jamais diria isso naquele tempo, mas enfim…) de ter aulas de latim por algumas das escolas por onde passei do 5º ao 8º ano. Foram vários professores, todos eles homens, creio eu, mas um deles, que aliás era padre, é o que guardei na memória, provavelmente por ser o mais bem humorado e por, ainda por cima, saber “de fato” latim: falava latim. Imagino que por causa dele eu tenha passado por todas essas experiências, frustrantes na sua maioria porque aprender que foi bom, nada – e até hoje goste de latim. Na faculdade nem cheguei a me sentir perseguida pelo querido professor Alceu, que literalmente caçava os alunos pelos corredores e por várias vezes me (nos!) deixou em imensas e quilométricas recuperações de traduções, que eu fazia livremente pelo que me parecia soar, sem grande paciência para descobrir-lhes o caso (e, coincidentemente, o significado) exato. Chegava perto, mas Alceu queria as coisas exatas, e explicadas.

Numa dessas recuperações (isto não vem nada ao caso, foge ao plano inicial desta crônica, que é outro, mas lá vai), decidimos marcar a tal da recuperação na casa dele, talvez já ele estivesse farto das tais das recuperações no campus da faculdade. E lá fui eu, e mais alguém de quem agora não me lembro, porque a figura até que terminou rápido e logo se foi, puro alívio. Eu rabisquei algumas coisas e levantei-me. Fui ficando, que a biblioteca do professor Alceu era respeitável. Encontrei tudo o que devia traduzir no original, em edições antigas; nada que me ajudasse na tarefa em mãos, mas eram livros com aquele tipo de cheiro que traz tudo menos livrarias: traz mãos e toques antigos, horas noturnas sob mesas pouco iluminadas, cigarros acesos e mentes pensando, sussurros ao pensar numa possibilidade, saboreada do único jeito possível – em voz alta. Quando dei por mim, o Alceu estava sentado na sua poltrona, muito feliz de que alguém mexesse naquelas prateleiras. Conversamos tempos e tempos, e quando fui embora já estava de noite, e eu preocupada com as crianças, o jantar, a casa… Quando lá cheguei, descobri que a prova tinha vindo comigo, e esqueci-me dela. Alceu nunca me perguntou por ela, e aquele foi afinal meu último semestre de latim.

A digressão vale-me agora a sensação de que é disso que a vida é feita e é por isso que vale a pena, independente, o Pessoa que me perdoe, do tamanho passível das almas.

Tudo isto para chegar ao que me prendeu hoje, e que na verdade até (reparo agora) tem a ver com esta história do Alceu. A diferença imensa entre as palavras “partilhar” e “compartilhar”. Debato-me com elas há meses, tentando perceber-lhes no meu dia a dia onde mesmo é que se encontram e onde é que enfrentam caminhos distintos.

Senão, vejam.

Não são forças opostas, parece-me a mim, antes energias manifestas de coisas bem distintas. Uma envolve o outro, objeto do partilhamento, na sua dimensão ausente, sem dele nada requerer, um pouco como se ele apenas existisse como as estrelas do céu que não imaginamos nos estejam atentas, apenas nós a elas; é um impulso de dentro pra fora, e o dentro é auto-suficiente; não há nada no fora que se queira ter de volta.

As três ínfimas letras que se juntam ao “partilhar” acomodam esse outro ao nosso lado, confortavelmente (ou não) instalado na poltrona defronte da janela aberta, ouvindo o eco dos silêncios da vida. Incorporam uma outra explicação do mundo, uma outra porta aberta, por onde esse outro se expressa e por isso nos transforma, por isso nos deixa passíveis de sermos um eu melhorado e mais inteiro, por conter aquele outro que até então expectava (se é que tal palavra existe; meu corretor ortográfico aqui diz que não mas eu não vou ao dicionário porque a palavra me agrada quer ele diga que exista, quer não).

Compartilhar implica movimento, disponibilidade, entrega, admiração, encantamento, liberdade, aceitação. Uma forma especial de fluir que se parece com o movimento da água. Invisível, sutil, permeada pelo silêncio do que se move no subsolo, quase sem forma. Compartilhar expande o que se quer na direção do que se descobre.

A energia desse “partilhar-com” abriu-se na minha vida através destas crônicas, atingindo-me em cheio dentro de um movimento que pretendia apenas e tão somente partilhar. Partilho deste lado, um tanto a medo confesso, porque a exposição acontece. E quando menos espero, e no momento exato em que preciso, ouço ou leio alguém que me retorna, que me norteia, que me traz o parâmetro que sozinha não posso ser, e o meu ser inteiro se abre em asas que me transcendem e me movem na direção que não é minha apenas. Recebo esse compartilhar como recebo outros tesouros: com os dedos trêmulos e com os olhos em brilhos de satisfação de ler e reler, e sempre me deixar surpreender pelos milagres que não podemos nunca deixar escapar por entre os dedos.

Acabei de ler aqui num blog a palavra com a qual me vou deitar: “vigiai” – está tudo aqui, diante de nós, e somos nós quem dizemos sim ou não. Sermos solitariamente partilhados ou em graça dividida com-partilhados.

Uma resposta

  1. O interessante, Ana, é que, me parece, via de regra, em (quase talvez) todas os encontros que temos na vida (é que "todos" é muito, né?), podemos escolher entre partilhar e compartilhar. Ambas as ações cabem no mesmo movimento humano.

    Não sem mêdo de parecer dono da verdade, o que definitivamente não sou, não quero ser , diante dos fatos da vida podemos escolher entre partilhar, ou seja, manter a si mesmo, ou a alguém, "fora" ou compartilhar, jogando-se "dentro", ou a outrém incluindo.

    Sabe aquelas pessoas que estão ao nosso lado, que até dividem conosco algumas coisas, mas que não estão em nós, enquanto outras estão? Putz…que viagem….., mas acho que é isso mesmo.

    Exemplo: tem sempre aquele amigo que é bacana, divertido, sensível e te quer bem, mas que não sofre com você suas dores, nem ri com você suas alegrias. Ele fica torcendo por você, mas distante, sem agir. E tem aquele outro que, mesmo às vezes não sendo tão presente e apesar de cheio de defeitos, você enxerga ao seu lado quando vai ao fundo do poço, ou está nas alturas. Ele não te espera subir, mas dá a mão para te alavancar. Sei lá….acho que o primeiro partilha….o segundo compartilha.

    Acho que é isso. É uma grande sacada esse texto.

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