É assim que Soluço explica o seu encantamento pelo dragão banguela. Não esperava encontrar muita coisa em “Como treinar seu dragão”. Mas a história me cativa, e muito. Essa frase em particular ficou ressoando em mim, acordando memórias e associando-se ao resto das coisas da vida de hoje.
Banguela não é um dragão diferente dos outros. E nem Soluço um garoto diferente dos outros, apesar de herdeiro do trono de seu pai viking. O que é diferente é a sua disposição, esse lugar da alma que significa pôr (do latim ponere) à parte (dis-). Quando existe disposição é porque algo se arrumou, se colocou a um lado, o que vem a significar que se lhe deu atenção diferenciada. Soluço parece ter uma disposição interna imensa de observar as coisas, de colocá-las a um lado e olhá-las com atenção, sem misturá-las a si próprio e nem àquilo que já está dado e consentido como “normal”.
Essa disposição observadora permite-lhe ver o que outros não enxergam. Percebe que os dragões que seu povo combate e insiste em exterminar, são seres tão presos e cativos de outros quanto os próprios vikings. Atacam porque são atacados. Matam porque receiam a morte que pesa sobre suas próprias cabeças. Curvam-se à ameaça de quem os domina, e os vikings curvam-se também. Com disposição, Soluço põe-se à escuta e percebe caminhos de encontro com esses seres. Transforma o paradigma porque descortina possibilidades. E descortina possibilidades porque não alimenta medo. Já se sabe que o medo é o mais perfeito imobilizador que existe.
A meio do filme, lembrei-me do quadro de Paolo Uccello, pintor italiano do Quattrocento – “São Jorge e o dragão”, pintado por volta de 1460. Dragões são representações fortes desde os primórdios da humanidade, e essa obra de Uccello está presente em “O homem e seus símbolos”, de Jung. É a imagem que ilustra este texto: vale a pena olhá-la com disposição. Perceber as sutilezas para as quais nossos olhos foram educados a ser cegos. As sutilezas que envolvem a relação da moça à esquerda com o dragão, e as sutilezas da relação do cavaleiro à direita do mesmo. As mãos de uma, e o que seguram, e as mãos do outro, e o que seguram. Forças humanas a um lado e a outro da figura mitológica: o que cada uma delas representa? Para onde seu olhar se dirige em primeiro lugar? O que evocam em você os mundos representados atrás dessas figuras? Só a disposição observadora, aberta e atenta, pode trazer-nos respostas – quando olhamos para ele, vemo-nos a nós mesmos.
“Quando olhei para ele, vi a mim mesmo” poderia ser também a fala de Carl Hart, autor de “Um preço muito alto”. Acabo de ler quase que num fôlego só. Hart é neurocientista e o seu campo de pesquisa é a ação que as drogas têm sobre o cérebro. O seu livro, porém, vai muito além disso. É um relato pessoal de percurso humano, de história de vida e de reflexão sobre ela. Um relato do perceber o fio que a vida tece para chegarmos onde chegamos. Hart derruba sistematicamente por terra vários dos mitos que envolvem o tema das drogas na nossa sociedade, e derruba-os a partir de uma premissa que foi construindo em si ao longo da vida: o questionamento de tudo o que achava que sabia sobre as drogas e a disposição de olhar além daquilo que assumia como verdade para si mesmo e para o mundo. O percurso que Hart nos oferece, recheado de dados estatísticos oriundos de bem fundamentadas pesquisas, toca-nos não só naquilo que achamos que sabemos e pensamos sobre o universo da droga. Toca-nos também naquilo que achamos que sabemos sobre as nossas vidas e sobre o mundo ao nosso redor. Toca-nos também naquilo que nos aflige, que nos desnorteia, e que é a busca de todo ser humano sobre a terra.
A disposição empática permeia o desenho animado, o livro de Hart e o quadro de Uccello. Todos são ofertas generosas de ver além das aparências, janelas para esse nós-mesmos que ainda não conhecemos. Não sei se existirá algo mais transformador e revolucionário do que encontrar-se no outro. Do que perceber que no outro vive uma parte de nós, e que dentro de nós vive o outro refletido. Encontros são janelas para esse novo olhar, e dar o passo que nos tire das certezas não é fácil, mas é o caminho. O caminho para situar em terreno seguro as nossas andanças, de fazer as escolhas corretas, de tomar os rumos acertados. Sejam eles sensatos e lógicos, sejam eles apaixonados e desconhecidos. Sem a disposição de um novo olhar sobre o outro e sobre si mesmo, sem abrir mão das certezas e daquilo que achamos saber, qualquer encontro se torna um acidente de percurso, e não um desbravador de mundos.