Fazer aniversário

Fazer aniversário é um luxo. Uma sorte. Um enigma. Uma passagem. Eu, particularmente, gosto de contar os anos que passam, gosto do sabor que fica impregnado em cada um deles, o aroma às vezes a naftalina, como os casacos de alguns de nós que só saem do armário e visitam o mundo quando faz frio. Lamentavelmente a memória me atraiçoa e custo a lembrar quando em que ano qual a data em que aquilo se deu. Quando outros me lembram, juro que não voltarei a esquecer, mas nem sempre consigo cumprir a promessa.

Hoje, 23 de julho, faria aniversário minha filha se fosse viva. Tenho há anos guardado um poema que o português David Mourão Ferreira escreveu no dia do 18º aniversário de sua filha, que nunca chegou a nascer porque quando o fez já se tinha perdido no limbo. Às portas de entrar neste mundo, deixou-se voltar ao outro lado. David gravou esse poema em um cd que o tempo (e as crianças) se encarregou de riscar, mas o registro da sua voz grave e embargada, o sibilar da baforada de cachimbo numa das pausas entre estrofes, ficaram-me nos ouvidos. Se fecho os olhos, vejo-o, envolto nas suas nuvens azuis de tabaco, os olhos postos numa filha que nunca viu.
É um poema aberto e limpo, tristemente sereno e doce, e durante todos estes anos em que conviveu comigo ali ao lado, manteve-me a chama acesa de uma data que não sei por que deveria significar alguma coisa. Antecipo este dia de hoje, este ano de hoje, há anos sem fim, pulando-os num rosário de contas transparentes umas, opacas como corvos outras. Mas esta noite é noite de lua cheia, a lua cheia de julho, a lua cheia de julho de 2010. Sem precisar de dotes extraordinários de antevisão e premonição, sei que sabia que este dia não seria como os outros, nem esta noite, nem esta lua, nem este ano. Dentro de todas as realizações e mudanças, de todas as decisões e conquistas, de todas as saudades de tantos, persiste imóvel, atenta como uma estátua grega, a imagem da minha filha hoje com 18 anos. Durante muito tempo pensei em celebrar-lhe a vida do outro lado, e deixar de lado a que não viveu aqui – mas não é verdade que não a tenha vivido, que não esteja codo a codo, como diria um espanhol com muito mais peso do que entre dois cotovelos, entre nós, o tempo todo.
Persiste imóvel e assiste. Recolhe no espaço todos os movimentos intensos daqueles que amou e a amaram, e neste dia que é de alegria, ela ri e joga a cabeça pra trás, olhando de soslaio para a felicidade de que faz parte. O irmão que agora se gradua num lado do mundo, o outro que hoje conquista sonhos sobre rodas a milhas náuticas de distância, estão esquecidos deste dia, mas a alegria com que vibram é parente daquela que semearam junto a ela e se manteve viva durante 18 anos.
Ao contrário de David, vi e abracei a minha filha vezes sem conta. Não sei o que será pior ou melhor, que quem sabe das dores é quem as sente. A falta ou a presença escassa? O nunca ter visto ou o ir perdendo a memória do que se viu? Ter impressa na pele a marca da passagem do beijo, ou imaginá-lo suspenso no ar e agarrá-lo sempre sabendo-o ilusão? Alisar a roupa que se vestiu, ou ter as palmas das mãos livres para o tecido feito de éter? Lembrar do sapato que não se comprou, ou não ter dentro essas ínfimas lamentações que fazem da vida um purgatório?
As transformações que a chegada e a partida da minha filha permitiram não têm fim, sucedem-se através dos tempos e dos anos, e é um luxo, uma sorte, um enigma, uma passagem tê-la assim tão perto, sem tristeza nem lágrima, sem peso nem desassossego, permitindo-lhe a vida naquilo que não acaba. O tempo passa e alivia os fardos de todas as árvores que somos. Dos nossos ramos caem folhas ano a ano, e só a nossa procura de sol impede que percebamos que cada folha que nos cai nos devolve à terra imortal.

Imagem: a inspiração, David Mourão Ferreira

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