Khayelitsha

Khayelitsha, “nova casa” na língua Xhosa. Quarenta e poucos quilômetros do centro de Cape Town, é a maior das antigas townships da África do Sul. Durante os 46 anos de apartheid, as chamadas townships abrigavam todos os “non white”: negros e “coloured people” – uma categoria tão frágil e difícil de lidar que numa mesma família não era difícil encontrar alguém “catalogado” como “white” e outro como “coloured”. Como tudo, mas literal e absolutamente tudo estava demarcado e separado em termos dessas divisões, dá pra imaginar os (no mínimo) contrasensos diários que as pessoas viviam. Dos bancos das praças às próprias cidades, a lógica era white pra cá, non-white pra lá. Bem pra lá, no caso das townships.
Vamos de trem, fugindo ao turismo dos “township tours”, as maneiras “seguras” de ver a vida real da esmagadora maioria dos sul-africanos. É muito fácil ter uma ideia bastante equivocada da vida, por aqui. A presença do império britânico é, claro, muito forte (claro porque, por todos os lugares do planeta por onde esteve, deixou marcas indeléveis), e, num lapso de tempo, parece que estamos em plena Londres. Por isso é preciso sair deste centro, deste miolo de vida como a conhecemos, da vida que parece normal e tão a nossa mesma de todos os dias. Aqui, 5% vivem assim. Vamos à vida dos outros 95%.
Viajamos em terceira classe; pouco difere da primeira, como pudemos constatar logo à chegada a Cape Town. A terceira classe comporta mais pessoas em pé e menos pessoas sentadas, é mais apinhada de gente, e é só. Como o nosso interesse são justamente as pessoas, apreciar a sua proximidade, é o ideal. Com 6 Rands e pouco mais de uma hora, estamos lá. O guia turístico alertou-nos com gravidade de que é arriscado e perigoso ir sozinho, mas mais perigoso será, parece-nos, entrarmos na vida dos que mal têm dinheiro para luz elétrica bem acomodados num aquecido ônibus de turismo. A eletricidade em Khayelitsha é pré-paga, através de cartões à venda em tantos lugares que logo se percebe que é o comum de todos. Os mercados da região vendem  também grandes galões de parafina, usada para iluminar, aquecer e cozinhar, numa alternativa à luz elétrica.
Aguarda-nos um mar de casas, a perder de vista. Postes centrais de iluminação, altos e potentes, garantem luz geral.  De longe e de noite, parece quase uma cidade fantasma: as pequenas casas de folha de flandres iluminadas de cima por essa luz mortiça, km e km em todas as direções. 
A alvenaria começa aos poucos a suceder a lata, mas esta ainda predomina. É frio no inverno e calor no verão. Há pouco espaço entre uma e outras, e todos se mantêm mais fora do que dentro.
As crianças, claro, estão por toda a parte. Aliás, todos estão por toda parte – é fim de tarde de feriado. Apesar do frio, as pessoas reúnem-se na rua, as crianças brincam e passeiam em grupos; querem saber quem somos, o que fazemos ali, de onde viemos, quando tempo vamos ficar. Ficam contentes, até orgulhosos, de nos verem ali, uma visita pouco usual nesse mar de ébano – “estou feliz de ver vocês aqui, é bom que não tenham medo, porque este é um lugar de paz”. O inglês, precário, não permite muitas conversas, mas é comovente o abraço que recebemos de todos, o calor que as pessoas emanam e nos deixa muito longe de sentir o perigo e o risco que o guia turístico anunciava. É provável que tenhamos perdido todas as atrações de Kayelitsha – a igreja anglicana que centraliza a imensidão de trabalho solidário feito aqui, as vistas da Table Moutain que já figuram em roteiros internáuticos, os pequenos mercados e as centros de produção de artesanato… Ainda assim, foi melhor desta forma, sem esquemas nem organizações, sem segurança nem preparação, a não ser a interna, aquela que pede, imperativamente, que nos desagraguemos e desacomodemos de nós mesmos, para voltar ao nosso mundo, tão pequeno, tão privilegiado, tão assombrosamente desigual, mais preparados para guardar as lentes de aumento quando em face dos nossos desesperozinhos.
No centro da cidade, os supermercados têm vendedores e compradores de todas as cores e feitios. Em Khayelitsha, todos os empregados e clientes são negros. Na ida, na volta e em todo o tempo de estada em Khayelitsha, estamos cercados unicamente por non whites.  Ainda que o movimento dos “colourblind” cresça (e se exiba em faixas e camisetas que tentam lidar com décadas de um efetivo apartheid), a separação permanece, baseada em fatores agora econômicos.  Conversando aqui e ali, as opiniões divergem. Lindiwe, que trabalha na catedral da igreja anglicana de Cape Town, vê as feridas abertas sem cicatrizar – feridas que as Comissões de Verdade e Reconciliação abriram por todo o país e não conseguiram fechar. Sente-se esquecido por quem governa hoje, esquecido pelos  que considera seus irmãos de luta e que agora ocupam o espaço do poder, lentos demais  para a sua urgência diária. Como Lindiwe, muitos querem respostas e ações rápidas, num processo que demanda necessariamente tempo e serenidade. Fácil pra quem está de fora, e observa com admiração o processo de pacificação deste país imenso. Nem tanto para quem convive com a desigualdade todos os dias, e a teve como sua companheira a vida inteira.

Em Kayelitsha, grandes container’s de carga naval oferecem instalações comerciais populares. Curandeiras para todos os males, pequenos salões de beleza de onde saem verdadeiras esculturas de tranças e dreadlocks, matadouros onde cabeças de porco e bode observam de cima a atividade das pequenas ruas, pequenas mercearias que vendem o que se pode comprar. A presença das políticas públicas dá ânimo ao resto da visita – são escolas, creches, ruas asfaltadas, calçadas, as próprias casas de alvenaria que se levantam parecendo palácios, ainda que o banheiro seja externo e diminuto.

A maioria deste quase meio milhão de pessoas trabalha onde o dinheiro está: o lado da cidade em que o branco se sente à vontade e não precisa de guias turísticos. Viajam todos os dias, numa rotina que repete o que acontece há meio século. Dos vendedores ambulantes que ocupam os espaços desocupados, levo comigo, das ruas de Khayelitsha, 3 cd’s de african jazz, house e Black Mambazo. Ganho, de quebra, uma Miriam Makeba e um sorriso feliz e escancarado, como todos os desta terra – não sei se pela venda, se pela conversa interessada na sua vida.
Perdemo-nos pelas ruas intrincadas e sem planejamento, preocupados com o horário do último trem. Como tudo, nada é como parece, e andar em direção à estação que se vê ao longe não é nenhuma garantia de se conseguir efetivamente chegar nela. Um pouco de bom e saudável estresse! 

Ao chegar à estação, bilheterias fechadas. Perguntamos ao guarda ocupado em conversar com um vendedor ambulante a que horas abrirá. Descobrimos que só no dia seguinte, embora ainda haja trens passando hoje.  Conversa vai, conversa vem, seguimos o conselho do próprio guarda: “olha: vocês vão ter de ir sem pagar”. Em Cape Town, hora e meia depois,  é preciso o bilhete para sair da estação – entregamos os de ida, e o guarda me olha de alto abaixo: “E a volta? Vocês acham que não precisa pagar?”. Explico o que aconteceu, o ar que se queria severo se desfaz e lá vem, mais uma vez, o sorriso aberto que me anestesia: “Foram visitar Khayelitsha para conhecerem como vivemos de verdade? Então não precisam pagar!”. E abre os braços num gesto que me faz querê-lo abraçar, mas ele só quer mesmo é abrir-me o caminho da saída. Sem que ele desconfie, saio sorrindo com os olhos cheios de lágrimas, todos os caminhos abertos.

Sikelel’ iAfrika!

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