Malabarismos

Estou desde cedo à procura de um rumo de prosa, por entre a procissão de momentos grávidos de crônica que me acompanharam no fim de semana. Há uma multidão de palavras nascendo à minha volta, e para alinhavá-las procuro-lhes os elos. Em todas, a plasticidade com que se trata a vida. A disposição de mudança constante. A metamorfose ambulante. O moldar do cotidiano pelas mãos, como se a vida nos ofertasse vida sem jamais cansar-se.
Para começar, o filme curto (está logo a seguir a este texto) de Eric Aberg, e os Cubos Fantasmas que se transformam a partir dos movimentos das mãos. Mudanças de forma e de aspecto, parecem essências plasmadas em formas regulares. Eric é sueco, e parece entender e gostar bastante de malabarismo. De dentro de seus vários trabalhos, pesco alguém que se chama Paul Cinquevalli. Um polonês-alemão nascido Paul Kestner em 1859. Descoberto aos 12 anos numa apresentação de ginástica por um trapezista já famoso (de quem adotou o sobrenome artístico), Paul juntou-se à companhia, a despeito da vontade de seu pai de que fosse músico. Deduzo que fugiu. Vítima de um acidente no trapézio, que o deixou inapto para as façanhas aéreas logo aos 18 anos, Cinquevalli desviou-se na direção do malabarismo. Transformou-se em um dos primeiros malabaristas a se apresentarem em salões e teatros manipulando objetos do dia a dia, ora prosaicos, como garrafas, guarda-chuvas, pratos, copos, ora estranhos e pesados, como banheiras familiares, cadeiras, mesas. Em 1885 já fazia enorme sucesso em Londres (chegou a apresentar-se diante da família real), onde acabou por se fixar; lá morreu em 1918, no ostracismo que lhe rendeu a sua cidadania alemã. Eric Aberg dedicou boa parte de seu tempo à pesquisa sobre Cinquevalli. Proferiu inúmeras conferências e palestras a seu respeito. Esse, abaixo, é Paul Cinquevalli, fotografado em 1873.
Talvez seja a mobilidade aquilo que os une e que chama a minha atenção. A paixão por transformar o cotidiano e seus objetos e condutas em matéria plástica e moldável. Na mão de Aberg, cubos fixos e sólidos deslizam como água sobre si mesmos, como se a ousadia adormecida nas coisas fosse despertada pela vontade do homem. Desconfio que a máxima de Cinquevalli deva aplicar-se a Aberg também: “para ser malabarista, só existe uma maneira e uma regra. E a mesma coisa se aplica, tenho visto, a qualquer outra coisa na vida: quando a sua mente decidir fazer alguma coisa, mantenha-se nela até que seja feita.”
O que poderíamos chamar de persistência ou perseverança. Algo que, de certa forma, nos impele na direção da esperança (isto é, de que os esforços empreendidos deem certo), o que por sua vez nos faz dar entrada nos domínios da fé. Essa, que move montanhas, é a que é capaz de nos fazer duvidar de nossas próprias dúvidas, e por isso mesmo nos mantemos nessa que, segundo o mestre malabarista, é a única regra e a única maneira: persistir até conseguir. Nada mais atual: nesses tempos de overdose de experiências e sensações e possibilidades, persistir e resistir à desistência é coisa vital.
Persistir une a raiz sistere (ficar firme, ficar de pé) ao prefixo pre (totalmente). Persistir é ficar totalmente firme, totalmente de pé. O tempo inteiro. Claro que cansa, claro que é preciso insistir, que nada mais é que repetir um esforço anterior. Perseverar junta o mesmo prefixo à raiz severus, que responde por sério, estrito. Seja nas coisas fáceis, seja nas difíceis, todas as palavras que contêm em sua formação essa raiz firme e de pé, sistere, são quase que imprescindíveis.
A intolerância, em todas as suas formas, põe à prova a nossa persistência, a nossa perseverança, a nossa fé. Está em todos os lados, dos mais expostos aos escondidos. Nasce da ausência do sentimento da fraternidade, da ausência do reconhecimento de nós todos como um único, um único cujo princípio é a existência da diferença como qualidade primordial. Como se eu aceitasse o outro ser igual a mim mesmo justa e especificamente por ser diferente de mim e eu dele. Quando tolero, recebo um estímulo e não tenho para com ele uma reação alérgica. Aceito-o e processo-o. Persisto na percepção da diferença do outro como garantia da minha própria diferença. Como se decidíssemos ler pelo avesso as palavras de Krishnamurti, aquelas em que ele diz que, ao nos nomearmos indianos, ou muçulmanos, ou europeus (ou corinthianos, ou evangélicos, ou umbandistas, ou cariocas, ou antropósofos), promovemos a nossa separação do resto da humanidade, e, ao nos separarmos dos outros por crença, nação, tradição ou ideologia, alimentamos a violência implícita de nos sentirmos em lugar distinto dos outros que não são ou pensam ou creem como nós. Delimitamos e isolamos o nosso espaço quando o nomeamos, e deixamos de pertencer à humanidade, porque a humanidade deixa de pertencer ao nosso espaço, ocupado tão somente por aqueles que são ou pensam ou creem como nós. Na realidade, quando restringimos o nosso espaço, restringimos a presença do outro em nós.
Uma mesa deixa de ser tudo o que poderia ser quando eu a nomeio: mesa. Da mesma forma, assim que me nomeio como forma definida, retiro de mim a existência de tudo que não nomeio para mim mesmo. Reflito-me num espelho esquecendo de que ele é apenas isso (um espelho), e de que apenas todos os espelhos, conectados e permeados uns pelos outros, revelam a humanidade à qual pertenço, e que, portanto, pode me definir. O que permeia os espelhos, e os conecta uns aos outros, é a essência onde se ancora a fé. A fé que persiste na capacidade da humanidade transformar-se a si mesma, a seus rumos e a seus paradigmas. A fé em que consigamos receber os estímulos uns dos outros reagindo a eles de formas novas e multiplicadas. Sem programações antigas e obsoletas, que nos limitem os caminhos de encontro que temos abertos à nossa frente. Todos eles.

Sobre Eric Aberg, além do filme ao lado: http://erikaberg.com/info/
Uma matéria sobre Paul Cinquevalli de um jornal inglês de 1897:
http://www.juggling.org/fame/cinquevalli/strand.html
Mais sobre Cinquevalli:
http://www.jongle-story.fr/jongleur.php?id=21
http://www.vam.ac.uk/content/articles/p/paul-cinquevalli/
A foto que abre o texto é de autoria de Ade Zeus, e encontrei-a no Flickr:
https://www.flickr.com/photos/ade_zeus/4660453343/

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