Encontrar a pessoa certa que nos fizesse companhia levou quase oito meses. Quando apareceu, trazia na sua mala anos de experiência atendendo partos pelo Xingu. Embrenhamo-nos juntos por essa mata densa que é nascer em casa, e tudo o que se desmonta e remonta dentro de todas as pessoas que se aproximam. Gostei de estar fora do sistema que a tudo sem piedade engole; a minha aspiração buscava o espaço e o tempo em que as coisas se demorassem nelas mesmas, e não houvesse obediência a nada que não fosse, e eu pudesse acertar e errar a partir da minha intuição. Só isso: que fosse, na intensidade do seu ser. Ao mesmo tempo, perceber sem mediações a força primitiva da fêmea que se abre para que outro nasça, e abrir as portas para o divino manifestado na palavra falada assim que o nascimento é nascido. A fêmea, a mulher, a divina.
Demorei muitos anos a sair dessa mata. Agora, a cada convite para entrar dentro desse território, a emoção e a gratidão são as mesmas. Gosto das plantas que crescem nesse lugar. Gosto do cheiro de cosmos. Gosto da explosão de vida e dor e vida e dor, nessa ordem tão caótica que são as forças que não conhecemos entrando no nosso dia a dia.
Mas não posso deixar de reconhecer que o sistema engoliu parte do que me movimentava, nessa capacidade ímpar que tem de engolir tudo o que estiver pela frente e tentar se contrapor a ele. Uma espécie de sucumbir a uma força que parece insuportável. Claro que é maravilhoso que mais e mais mulheres possam ter seus direitos respeitados na hora sublime do parir; que possam optar, que possam escolher; que possam ser o que e quando e como quiserem ser. O problema que fica incomodando esta minha cabeça inquieta é se as escolhas e as opções são internas ou ainda e mais uma vez ditadas pelo que está do lado de fora (e que eu vou chamar de sistema), todo esse discurso certeiro que diz e dita e preconiza o bom. Não sei, mas tem alguma coisa me incomodando. Eu não sei se as mulheres que parem estão mais ou menos donas do seu parir, ou se diluíram por entre outros atores (além do médico que já era tanto) a responsabilidade que é só delas. E que é difícil assumir e carregar até a última consequência. E é solitária. E é assustadora. E transforma tudo.
Olhando à distância de anos estes sete partos, a dor não me assusta como não me assustou; movimenta-me as entranhas, desperta-me centros vitais que o estado não-doloroso não alcança despertar. Nem tento encontrar grandes explicações, porque certamente não as encontrarei (ou entenderei) e o que sei, hoje, é que a dor é alimento da minha alma tanto quanto o seu contrário, que nem sei como se chama ao certo.
O que sei, e sem nuvens, é que dor não é sofrimento. Sofrimento não tem sentido. Sofrimento, ou os outros criam, ou nós criamos. Mergulhamos dentro dele como se panela de óleo fervente, e esse mergulho não é necessário. Necessário é amar e ser amado, é olhar e ser correspondido, é poder correr livremente pelos campos abertos da entrega e ter a retribuição exata do que se deposita nas mãos dos outros. Nesses campos, a dor tem espaço. O sofrimento, não.
Sobre o filme que é preciso assistir:
http://www.orenascimentodoparto.com.br/
Não tenho fotografias dos meus partos, porque quis guardá-los só na memória. A fotografia é da minha primeira inspiração, o livro de Leboyer, “Nascer sorrindo”.