Italo Calvino é um escritor profícuo e variado. Nascido em Cuba, de pais italianos, transformou-se num dos mais importantes escritores do século XX. Desde o curioso diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan, “As cidades invisíveis”, provavelmente seu romance mais conhecido, a “Seis propostas para o próximo milênio” (conjunto de palestras que daria em Harvard se não tivesse morrido antes, deixando-as providencialmente escritas), Calvino transborda os atributos que queria ver conferidos à literatura futura: leveza, rapidez e multiplicidade. Essas propostas sofreram críticas várias, entre elas que antes o romancista Calvino ao literato Calvino; que nada trazem de novo, estas palestras; que ainda por cima parecem muito desorganizadas… Ainda assim, quando as li, gostei delas, como gostei de tudo o que, até hoje, li do mestre italiano. A crítica literária está aí para isso mesmo – tecer comentários elaborados, que esbarram em outros e nos ajudam a chegar mais próximos a uma ideia própria, flexibilizando o nosso processo de pensar através do pensamento alheio.
Lembrei-me de Calvino porque fui, agora à tarde, em busca de outro de seus livros, “Por que ler os clássicos?” – tomo-lhe emprestado o título. Divaguei na direção dessa pergunta por precisar elaborar alguma espécie de ementa de curso que contemplasse respostas possíveis. As de Calvino seriam as primeiras. Lembro-me que a impressão que esse livro deixou em mim foi o balançar das certezas (literárias) que tinha, e a descoberta de que todas (literárias e não só) sempre e a qualquer tempo são contestáveis.
Não achei o livro – emprestei-o a alguém, ainda não voltou. Uma sorte: a sua falta fez-me pensar em contrastes entre semelhantes, não sei bem por qual associação de ideias. Passeando as gemas dos dedos pelas quinas das prateleiras, fui dar àquela em que se enfileiram todos os Machados de Assis aqui de casa. Não a frequento muito, ultimamente, e a percepção da falta fez-me parar. Decido retirar da mesma algo conhecido, emblemático, quem sabe se alguma coisa que todo vestibulando (por exemplo) esteja fadado a ler. “O alienista”, portanto. Por que lê-lo? De novo, ainda mais?
Não é suficiente, falta-me algo que me absorva a tarde inteira. Quero os contrastes, mas não os evidentes, antes aqueles que se camuflam nas dobras das coisas. Da prateleira de cima, acena-me insistente “Pai Goriot”, ao lado das “Ilusões perdidas” que prefiro não ler agora. Balzac. Há anos me pergunto, sem ter tido antes tempo de pensar em solucionar a dúvida, porque esses dois escritores parecem-me tão diferentes. Ainda que as ideias de base sejam comuns, o ideário realista solidamente presente em ambos, fruto provável de seu tempo (diriam eles com certeza). Imagino que, sendo ambos clássicos, possam responder-me a pergunta que Calvino se fez e para a qual não encontro a resposta que deixou escrita.
“Pai Goriot” em uma mão, “O alienista” na outra. Pareço, ao passar pelo espelho da entrada, disposta a qualquer coisa. Antecipo o prazer de afundar na poltrona da sala e ler até os olhos me pedirem trégua. Um prazer que devo honrar – nem todos os que querem podem fazer o mesmo, e os que não querem ainda não descobriram, entre outras coisas, por que ler os clássicos.