Uma amiga querida, daquelas que levamos anos para encontrar e depois não esquecemos jamais, pede-me, à distância de uma dor que só adivinho, que lhe escreva algo sobre reciprocidade. O caminho etimológico dessa palavra é tão complexo que merece um gráfico, coisa que não sei fazer, motivo que me leva a tentar uma explicação linear:
- “Recíproco alcança-nos diretamente de reciprocus: uma palavra latina que significava ir para trás e para diante, ida e volta. Usa o sufixo re-: de novo, outra vez.E deriva de procus – pretendente (isto é: alguém que pretende, ou quer, alguma coisa; um angariador; usava-se também para referir-se a gigolô). Procus, por sua vez, derivou do prefixo grego pro, que responde por “antes”. Que, a seu tempo, derivou de prex – oração, pedido.”
Maravilhas da etimologia! Ora vejamos: essa palavra que atormenta minha amiga remete-a sem ela saber à falta de oração (ato de pedir ou implorar); à falta do que vem antes; à falta de alguém que pretenda, que queira, alguma coisa (que ela pode dar?); à falta de poder ir e vir e aposentar as certezas, as verdades, as singelas capacidades que construímos para nos adaptarmos tolamente àquilo que os outros esperam de nós. Imaginando que assim seremos felizes e que deixaremos de avançar e recuar na vida, e que esta então será um lago de tranquilidade, sem nuvens, sem tempestades, uma linha direta que nos conduza diretamente ao paraíso.
E de repente acordamos uma manhã e pensamos: “Mas que raio de solidão! Onde está quem devia estar aqui ao lado? E que disse que estaria?”. E lá vamos nós em busca da reciprocidade, do manter-se em movimento, do ir adiante e atrasar-se logo depois (o que equivale a ter um próprio ritmo). Difícil é quando falta algo de antes, falta esse alguém que pretenda também, porque a reciprocidade a dois demanda passadas equilibradas e sincrônicas, nem sempre fáceis, nem sempre reais, nem sempre juntas.
O caminho da reciprocidade atravessa de vez em quando o da retribuição. Como se um se nutrisse do outro. No entanto, há uma diferença básica: retribuir ainda nos liga à ideia (e ao fato) de tribo, que nos acompanha há milênios, e que faz com que entendamos que há laços que nos ligam, visíveis, e que têm a ver com a nossa relação de sangue, de etnia, de grupo – de tribo. A re-tribu-ição indica que algo deve ser dividido, compartilhado entre vários, aqueles que, numa perspectiva ou em outra, são nossos iguais. A reciprocidade é apenas movimento, um pêndulo no espaço que faz com que, de madrugada até agora, eu queira ser recíproca, eu queira avançar e recuar junto ao pensamento da minha amiga, preso na redoma de si mesmo lá longe, onde meus olhos não alcançam mas a minha alma sente. E, ao mesmo tempo, que não queira que nada seja retribuído, porque não é preciso que sejamos do mesmo lado, da mesma rua, da mesma família, da mesma ideologia, da mesma presença. Até porque a graça desse pêndulo que, recíproco, se estica e oscila entre nós é, justamente, poder refazer-se dia a dia, indo e voltando como um gesto imenso, sereno e solene, nessa dimensão que é a das relações entre dois seres humanos, e que não se norteia pela sua origem, mas pela sua capacidade de entrega.
Essa amiga, ao longo dos nossos anos de amizade, cheios de mesas postas para incontáveis chás e cafés, mostrou-me o ser discreta sem deixar de ser contundente. Longe de ter aprendido, sobretudo a parte da discrição, observo-a aqui de longe, tal qual se materializa diante de mim como exercício de memória, e admiro-lhe a seriedade e a forma categórica como se move para diante e para trás, ela recíproca em tudo, à espera de que o mundo também o seja. Sou-lhe recíproca daqui de longe, mas nada posso retribuir-lhe: como ela, oscilo entre polos que muitas vezes não entendo, feliz e aflita de que eles existam. E prefiro mil vezes ser-lhe fiel na reciprocidade que prometo, indo e vindo num abandonar de certezas que me abram as portas do que está por vir, sabendo que também ela estará recíproca ao meu lado quando alguma delas se fechar e me deixar inconsolável.
Respostas de 4
Cotidianamente nosso uso e entendimento das palavras é similar ao de irmos a um poço buscar água e o trazer com muito pouca água. Você o trouxe transbordando!
grata pela reflexão, Margarida
Obrigada, Margarida – pela leitura e pelo comentário! Beijo.
Riquíssima a etimologia; tão ou mais rica a reflexão sobre ela. Merece que, pelo menos, compartilhemos (mesmo que não sejamos reciprocados).
Florêncio
Bem-vindo, Florêncio, e obrigada – que assim seja, que a falta de reciprocidade não nos impeça o compartilhar sempre!