Dia desses, numa das aulas de Escrita Criativa, uma escritora querida contou-nos a seguinte história.
Seu neto encontrava bastante dificuldade na leitura em voz alta (e em voz baixa, consequentemente): desconsiderava todo sinal de pontuação (especialmente as vírgulas) e, coitado, perdia o fôlego frequentemente. Zelosa, a avó disse-lhe que, sempre que encontrasse uma vírgula, respirasse – que parasse para respirar. Ele retomou a leitura, fazendo da sua respiração, a cada encontro de vírgula, um profundo suspiro. Ela achou graça, claro, mas resolveu não dizer nada. Era um sábado, esse dia, e a leitura prosseguiu entre suspiros virgulados.
No dia seguinte, foram ambos lanchar a uma padaria perto de casa. A avó perguntou-lhe o que queria e ele respondeu sem titubear: – Ali, aquele doce de vírgulas! Os olhos da avó brilham ao nos contar, e faz um silêncio profundo. Olhamos todos para ela esperando a explicação. – Não entenderam? Ele queria um suspiro!
Uns dias depois, em outra aula de um outro grupo, conto a história. Porque o tema em mãos era, justamente, pontuação. Coisa que as pessoas acham que não sabem – embora ninguém se atrapalhe com ela ao conversar… Chegamos à conclusão de que as vírgulas são silêncios, espaços de tempo em que os sons dão um tempo dentro da gente para se ouvirem melhor. Logo me vem o silencioso instante antes do nascimento, o segundo anterior ao primeiro respirar, ao primeiro suspiro que integra um novo ser à vida terrestre. Quem viveu na Idade Média falava em spirare, e tanto podia querer dizer respirar, quanto soprar, quanto viver. Esse intervalo de silêncio, o sopro, o respirar, mantém-nos vivos e à tona.
Cada aula poderia, tranquilamente, render um texto. De tanto que todos se ensinam, sobretudo quando o olhar atento à palavra se desencontra da lógica da regra, quando a intuição assume a liderança e as palavras se soltam de dentro de cada um, falando elas mesmas do que tratam, do que fazem, do que são, do que querem – quando de repente a escrita se resume a um espaço em aberto, livre, solto, disposto a se doar à nossa mão imaginativa. O diálogo transforma-se, nessas horas, e emerge a impressão de que sabemos muito mais do que achamos que sabemos. Sobre pontuação, e sobre muitas outras coisas – sobretudo quando conseguimos deixar que as regras repousem tranquilamente a alguns metros de distância da vida, essa matéria oxigenada que compartilhamos enquanto respiramos.
Respostas de 2
… vida, essa matéria oxigenada que compartilhamos enquanto respiramos.
Uau!
Beijos
Marcele
Aplausos a esta mesma frase que provocou o uau da Marcele.
Linda,mestrAna! Verdade tão leve e solta qto o próprio elemento.
Vivemos,(respire)nós que brincamos com as palavras,(respire de novo) oxigenando em letras o que não damos conta de oxigenar ao vivo.
Love your writing as well, master!
Kisses + light,
Neca Terra