Trapézios

Especialmente no verão, acontecia assim: andava até o fundo do quintal, empoleirava-se na figueira velha, galho ante galho até chegar aos troncos apoiados no muro. Uma perfeita plataforma de lançamento para o outro lado: um descampado com duas relevantíssimas  funções. De um lado, a cadeia pública, envolta num mistério proibido que fazia fervilhar a imaginação; do outro, o espaço onde todo e qualquer circo que viesse até à cidade montava seu acampamento. Outra forma de formigamento, mais acessível ao pulo furtivo de cima do muro caiado de branco.
Andava ligeira até o círculo de trailers e carros, a lona esticada e firme ao centro. Rodeava, rodeava, aflita sem saber como raios faria para se infiltrar e pertencer. Ir-se embora sacolejando numa casa sobre rodas, com uma tarefa importante que tanto podia ser dar de beber ao elefante como fazer brilhar com afinco os sapatos do palhaço. 
Mas o que ela mais queria era ser trapezista. Sentada num dos lugares mais baratos do circo, porque dava razão à avó, “de qualquer lugar se pode ver o mundo”, a única coisa que a interessava (além de espreitar os garotos do circo, de quem queria com urgência ser irmã, prima, amiga, qualquer coisa) era o momento em que os trapézios se iluminavam. Antes mesmo de que os trapezistas avançassem pelo picadeiro, a falta de ar subia-lhe da base da coluna e penetrava em seu cérebro como se alguém das profundezas dela mesma a avisasse de que aquilo era ela fora de si, e era bom que parasse até de respirar para prestar muita atenção.

Passou anos com essa vontade de trapézio. O que não lhe garantiu estar sempre atenta aos que foram se apresentando. Alguns passaram sem aviso nem notícia. Quase não lhes guardou memória, esquece-se dos nomes, não sabe bem em que cidade. Os que apareceram sem redes de segurança foram com certeza o seu maior desafio e desacomodação, e talvez seja desses que ela mais goste. Outros, compoem-se com leveza e tranquilidade, um balançar dos tons da espera suave, como se o tempo passasse por cima da tenda e não alterasse o momento interno. Há por vezes os que, de súbito, se misturam e multiplicam – nesses, há vários trapezistas nos mirantes, observadores que esperam que algo lhes chegue às mãos. Quando acontece de um trapézio se aproximar vazio, puxam-no com habilidade com as mãos e formam linhas oblíquas em seus olhares. Ela está atenta do outro lado da estrutura de ferro, mas raramente se mexe.

No fundo, teme os trapézios furta-cor. Atraem-na, são-lhe irresistíveis, uma espécie camaleônica de natureza, um tempero orientalmente agridoce, uma vagem de tamarindo que se chupa até o fim para aliviar o travo amargo que provoca, e que as pessoas nem sabem o quanto gostam – mas querem. Furtam-lhe as cores tanto quanto lhe furtam o sossego; mas o pior de tudo é quando lhe furtam aquilo que ela chama de confiança, e que responde ao impulso que a faz largar o trapézio sem sequer pensar se haverá quem a alcance do outro lado. A meio do voo, descobre atônita que é bem possível que não haja braços que agarrem e segurem e protejam e se façam atentos, e que apenas a aguarde um vazio cor de tarde triste sem chuva. Que pode ela fazer, sem a rede de segurança que nunca guardou na bagagem, com a confiança que se esfuma e o salto que já deu?

Os trapézios furta-cor divertem-se com a confusão que provocam. São alegres e bem-aventurados, mas escapa-lhes um dom: o de se fazerem eternos nos gestos pequenos de um dia após o outro, porque quando nunca nada se espera, é muito pouco o que se oferece.

Imagem: Mariana Gouveia/2009

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