Tive a sorte de assistir dois fantásticos filmes esta semana: Hannah Arendt e Flores Raras. Em ambos coexiste o fenômeno da multiplicidade. Ambos são falados em duas línguas, porque a situação dos seus personagens promoveu essa fusão de dois sistemas linguísticos diferentes num mesmo cenário e enredo. O primeiro é falado em alemão e inglês; o segundo em inglês e português.
Funcionam perfeitamente, os pares de idiomas superpostos, sem que possamos dizer que o filme é falado em uma ou em outra língua. É falado em ambas. Sem que eu faça muita força para isso, o tema-mote da semana (superposição e decoerência) torna e retorna aos meus dedos que pensam.
Sobre Hannah Arendt (porque houve quem me dissesse, sobre o último texto, que seria bem melhor se eu explicasse quem que é o gato do Schrödinger afinal! rs): em 1961, a filósofa judia alemã naturalizada norte-americana, foi convidada pela revista The New Yorker para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel. O artigo gerado por essa cobertura deu origem a uma potente polêmica entre Hannah e a comunidade intelectual (e não só) judia. Dele nasceu também o livro “Eichmann em Jerusalém”, onde Hannah cunhou o termo “a banalidade do mal” para designar aquele aspecto da natureza humana em que se age sem percepção do mal que se inflige ao outro, por não se racionalizar a própria ação e por alojá-la no campo da obediência cega às ordens superiores. Arendt, com certo horror, chega à conclusão de que Eichmann não era um monstro de crueldade, mas um sujeito terrivelmente comum e banal. Como qualquer um de nós.
Quando uma pessoa abdica da sua prerrogativa de pensar (que para Arendt é base da condição humana), perde a capacidade de poder distinguir o bem do mal. Ou seja, a sua capacidade de julgamento moral. O homem que abre mão do seu pensar, e justifica as suas ações dentro do campo da obediência cega a ordens superiores (sejam esses “superiores” qualquer instância), não é exatamente um homem, mas algo que se situa no afastamento da esfera humana.
Entre os quatro reinos, o que nos diferencia dos demais, diz-nos o também filósofo Rudolf Steiner, é o termos as mãos livres. As nossas mãos tornam-se livres quando o nosso pensar é livre. A liberdade das mãos está ligada à liberdade do pensamento. Se abdicamos de pensar em liberdade (ou seja, sem estarmos sujeitos à manipulação alheia, por exemplo), abdicamos da responsabilidade sobre as nossas ações/mãos, e abdicamos da própria condição humana. Arendt distancia-se da sua problemática individual de judia perseguida e encarcerada, exilada e asilada, para aproximar-se do sujeito Eichmann. Afasta-se, creio, de seus pré-conceitos, das suas pré-suposições, para poder efetivamente compreender quem é e que motivações teve esse homem para fazer o que fez – para poder pensar em liberdade. Esse distanciamento é condição de uma maior objetividade, e uma maior objetividade firma ideias que deixam de estar tão sujeitas aos vieses das nossas subjetividades e idiossincrasias, assim como das alheias.
Arendt foi duramente acusada, especialmente pela comunidade judia da época, de não condenar a culpa aparentemente óbvia ao monstro nazista. No filme, a cena de sua última aula é um primor de construção de pensamento – para ela, tentar compreender um homem não é perdoá-lo, mas suportá-lo naquilo que ele, de fato, é. Tentar compreender não é perdoar. Eichmann, para ela, abdicou da sua condição humana ao abdicar da capacidade de pensar em liberdade – e, consequentemente, de poder julgar a própria ação como boa ou má. Condená-lo por isso é não compreender e não compreender é não alcançar a capacidade de julgar. Eichmann é culpado de várias coisas, mas de não um crime contra a Humanidade, pois sequer tinha consciência da existência de uma Humanidade à qual a sua ação obediente se dirigia.
A banalidade do mal, percebida por Arendt na década de 60, é hoje prato do dia a dia. A nossa capacidade de pensar é refém de tantos detalhes e pequenos nadas, que somos arrastados e impelidos a não pensar sobre nada, ou a pensar de forma pasteurizada o que convém que pensemos. Pensar dentro da caixa em que precisamos caber, de preferência de forma silenciosa. Nada disso é a forma pensamento que liberta as nossas mãos. Para isso, diz Arendt, é preciso que exerçamos a nossa condição humana de seres pensantes, e que saiamos de dentro da caixa, com todos os riscos, possibilidades e probabilidades múltiplas que representa o que a própria caixa representa: ela mesma, seu exterior, seu interior e todos os seus planos paralelos. Boas coisas pra se pensar num Brasil que festeja a independência neste 7 de setembro e de uma Síria que nesse mesmo momento se arrisca a perder a sua.
“Open Box”, de Gavin Turk, 2008
Respostas de 4
Dedos que pensam, que legal!
E ainda se diz se alguém q tá meio louco "está fora da casinha"… Que tal mudar o dito para: "nossa, o cara tá precisando muito SAIR da caixinha" ?!?
Hoje acordei com dedos muito pensantes, aprendo contigo,mestra querida!
See u soon, baboon 🙂
Love and light,
Neca Terra
Ana, demais….posso compartilhar na minha página? fiquei pensando na ausência de liberdade do pensamento dominado pela astralidade, pelo egoísmo…a manipulação de pensamento por aquilo que está fora de nós é um grande risco, mas também o é a manipulação do nosso pensamento pelas nossas próprias fraquezas….Posso compartilhar?
Parresia…
Claro que pode, Ivan – aliás, sempre que desejar.