A cidade outra – o sonho

Quem me fez voltar a sonhar foi o manguezal. O seu silêncio expectante, a frieza úmida, a superfície mutante. o fundo desconhecido. Mais do que ser engolida, a sensação de ser deglutida pela lama fria. Voltei algumas vezes, sozinha para que o silêncio fosse mais potente. Um santuário rodeado de árvores cheias de surpresas. Os troncos vermelhos por dentro, as raízes suspirando à tona da lama. A vida a todo o custo. E tudo cheio de vida, tudo prestes a dar à luz. Na noite desse primeiro dia, perco um anel num sonho; o anel afunda-se na lama e quando acordo estou no chão, à procura dele por entre os mangues do meu sonho, traves da cama onde durmo. Devo tê-lo encontrado – os dias que se seguem preenchem-se todos de sonhos.
Esta noite, a meio do frio deste sul que me acolhe todos os meses, também sonho. Sou acordada de tempos em tempos por um dos meus colegas de quarto, que ronca tanto, mas tanto e tão profundamente, que faz estremecer o beliche que dividimos. Dormir na cama de cima seria o suficiente para me fazer acordar algumas vezes. Com a ajuda da sua (só pode ser) grave apneia, tenho tudo para ter o sono interrompido sem que esteja satisfeito. Talvez por isso me lembre dos sonhos. E talvez por causa deles me levante tão leve, e cedo. 

Sonho com dedos e água. Deslizam entre si. Dedos longos e vagos, uma textura imprecisa que não impede que saiba que são meus. Submergem e flutuam ao mesmo tempo. Tudo o mais está parado, quieto, e é um silêncio de catedral abandonada. O barco em que estou sulca as águas rasas e esverdeadas do lago. A vegetação parece muita, mas não é. São só grandes plátanos, e a sua sombra – desenha luzes entre os meus dedos e a água, matéria luminosa embrenhando-se no estado líquido do tempo. Pequenos peixes atravessam as águas por baixo do barco e meus dedos querem alcançá-los. Lentos e terrenos, esguios e alaranjados, escondem-se nas margens verdes.
Um remo invade o leito do lago com suavidade, enterra-se na água sem lhe quebrar o estado de espelho. Inclina-se para não destruir a superfície, reafirma a sua postura e adquire a força que me faz avançar. O movimento do remo no espaço desenha o silêncio da minha alma. Minha tia sorri à minha frente. Seus dentes brilham como pétalas sob as águas.
Tomo banho assim que acordo, e penso que é a água do lago que me lava. Estou pronta para começar o dia. Aguardam-me personagens sem voz que precisam explicar as suas razões.

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