Abri neste começo de domingo um livro aqui em casa, uma edição dos sonetos camonianos que meu avô me deu, esperançoso de que os lesse quando tinha qualquer coisa em torno de oito anos de idade. Não me lembro de os ter lido então, mas depois passaram anos junto à minha cama, porque não há nada melhor do que acordar no meio da noite e ter um poema ao lado para alimentar a madrugada.
Dentre as páginas, pulou-me para a mão uma folha de faia, a faia que cresce no jardim da casa dos meus avós, plantada no dia em que meu pai nasceu, testemunha de várias infâncias, dores, descobertas, segredos. As faias são árvores altas, seres consistentes e sólidos. Mesmo não sendo daquele tipo de árvores fáceis de escalar, porque não têm galhos que acolham os primeiros pés, deixam-se subir com facilidade a partir de certo ponto, quando se ultrapassou a barreira do tronco escorregadio. Ao mesmo tempo, são voláteis e imprecisas, como me atesta, de um lado, esta folha caduca que eu devo ter recolhido do chão há uns tantos anos, e que aqui está, numa construção rendilhada característica, que me enfeitiçou boa parte dos outonos. Porém, são imorredouras quase, e é a mesma folha que me atesta isso, por outro lado, porque as suas nervuras rijas e duras ainda estão aqui, carregando em si a imaginação inteira de uma árvore que só sei que está lá, ainda de pé, porque não resisti e telefonei à minha tia Luisa, e ela me garantiu que sim, que há coisas, aninhas, que nunca mudam.
Não tenho como discutir com ela. Além de minha tia, é minha madrinha, a pessoa que antes de qualquer outra me ensinou primeiro a ouvir e depois a cantar e, entre as duas coisas, a não entender como tantas horas se passavam no relógio quando a ouvia ao piano apenas o que pareciam minutos. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque entre elas emoldura o amor que sente por mim, e eu descubro, nesta folha de faia e na voz através dos fios, que são amores como esse que me transformam nessa que sou hoje, e provavelmente por isso é que o que eu quero, quase sempre, é descobrir todas as maneiras de amar o que está à minha volta. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque quer, na que eu sempre penso que pode ser a nossa última conversa, dizer-me que apesar de tudo, há aquilo que está na memória e não se apaga – a tua faia e o meu piano, aninhas, nunca mesmo que cortados deixarão de existir.
Não tenho como discutir com ela, e nem quero. Prefiro pôr-me à escuta no cais da memória, e descobrir de quantos momentos felizes e dolorosos se compõe a lembrança íntegra de alguém. Amorosa, mas severa, às vezes intransigente, outras pouco perceptiva; lembro-me de uma noite em que esta mesma tia Luísa me mandou dormir, num tom seco, minutos antes de uma sua amiga, cantora lírica, se dispor a cantar não me lembro exatamente o que. E eu ali, intacta na expectativa do ouvir, fui-me arrastada escadaria acima, através de uma casa de paredes de pedra gélidas e grossas, largura igual ao comprimento do meu braço de nove anos; depois escapei da cama e fiquei, tiritando de frio, no cimo da escada, escutando o piano da minha tia, a voz da amiga dela e o choro que não conseguia conter, morta de medo de que me descobrissem nessa contravenção. Mas logo correm à minha lembrança os domingos ensolarados em que me arrebatava da porta da igreja e me levava até Lisboa, intermináveis então 80 km, porque havia um concerto e eu tinha de ouvir. E ela tinha passado a sexta feira procurando ingressos onde já não os havia, porque aninhas, vais gostar tanto!
Esse poder de evocação das coisas é das sensações que mais nos salvam de nós mesmos e dos nossos momentos tristes, que só devem mesmo existir é para que as resgatemos a elas. Salvam-nos da impressão de que tudo está perdido, de que o que foi não é mais, de que estávamos errados na percepção do que nos amou, de que talvez seja mais sensato abandonar o que hoje não cabe no coração, talvez coisas do amor nunca mais… Evocar passados, tanto faz se longínquos ou tão próximos que ainda se sinta o calor da pele que se encostou à nossa, regenera os sentimentos e, se bem dosados, se os deixamos repousar ao nosso lado sem sequer lhes respirarmos em cima, dando graças de que existam, percebendo-lhes com exatidão o contorno, entregando-nos ao reviver que propiciam – não há nada mesmo que mude nunca: nem uma folha de faia dentro de um livro antigo, nem um telefonema a meio da madrugada do outro, nem a invasão de lembranças que nos reinventam a vontade de amarmos os outros como eles são, porque eles são e quando eles são, que é sempre.