Creio ter conseguido, finalmente, delimitar o espaço exato do nascimento de uma crônica. Entre a 3ª e a 5ª vértebras torácicas, o que não é assim um ponto realmente exato mas assim é a vida, nem tudo o que parece ser o é de fato e é bom que nos acostumemos sem demora a isso. Mas de qualquer forma um espaço feito de incomum amálgama de agonia e êxtase. Uma necessidade imperiosa dentro de um recipiente feito de um tipo de vontade que se dissolve violenta em si mesma.
A dúvida entre a vértebra exata está na posição que o corpo assume ao escrever, e não nas palavras em si. Depende muito mais do lugar onde se escolhe escrever, que por sua vez está muito mais ligado àquilo que dentro decidiu dizer. Se de lado ou se sentada, a vértebra em questão altera a sua posição em relação ao eixo que considero, que é o da minha percepção de onde estão céu e terra. Dependendo, portanto, desse eixo, muda a sensação da vértebra por onde se escapa, às vezes num suspiro, a crônica.
Não importa: perceber nesta manhã que é de uma vértebra que as crônicas se sopram de dentro para fora foi deveras surpreendente. As crônicas desvanecem-se no ar, dissolvem-se num átimo porque é da sua natureza. Iluminam por um segundo os milagres pequenos do dia a dia e infiltram-se no nosso cotidiano coração sem que depois nos lembremos disso. Desaparecem em meio aos nossos ossos e quase nos esquecemos de que nos existem. Se não me apresso e agarro esta que me sai agora, fica-se perdida para sempre.
Por mais que tente recuperar aquelas duas palavras que de repente davam início a um turbilhão de pensamentos em absoluta desconexão entre si, não consigo, frustro-me, irrito-me e digo a mim mesma que a idade está chegando e eu perdendo a memória.
Mas não é nada disso. É claro que a idade está chegando, seja ela qual for, mas a memória está onde sempre esteve, apenas menos interessada em guardar números e endereços. O problema é da natureza da crônica e da minha incapacidade de lhe localizar o ponto de saída de mim e entrada no mundo.
Mas agora esse é um problema resolvido, e assim que acordar de novo a meio da noite, com as ideias preciosamente alinhavadas dentro de mim, basta-me ajeitar a vértebra no lugar e deixá-la recolhida, em silêncio e penumbra como se gostam os partos, como uma asa ainda sem despregar, guardando os segredos dos voos sem queda das palavras. E, ao acordar de fato, depois de ter voltado a dormir, lembrar-me de descolar do meu corpo a minha vértebr-asa com cuidado, já com o papel e o lápis na mão, chamando-me de volta à vida com um sorriso de triunfo e conseguimento.