Albardar

Uma coisa leva à outra. Às vezes perdem-se os motivos pelo meio do caminho, mas de repente eis que surge uma ideia costurada com palavras, que se vão estendendo pelo papel afora sem se saber de onde surgem as coisas que as unem. Hoje, à procura do ditado que preencheria o meu dia e me faria escrever, longe que estou das ficções às quais decidi dar descanso, fui dar à palavra albarda.

Já se sabe que as palavras que começam com al são nossas parentes árabes. Muitas e muitas, algumas caindo em desuso porque aquilo de que falam também cai em desuso. Assim são as coisas: vão se acabando pela mão dos homens e as palavras retornam ao seu mundo extático de antes de nascidas. Dói-me a alma ver uma palavra que morre.
A esta, ressuscito-a. Li outro dia que uma pessoa só morre de fato quando o seu nome deixa de ser falado pelos vivos. Que só morre quando o último pronuncia o seu nome. Com as palavras deve acontecer o mesmo. 
Albarda. Do árabe albarda’a. Usa-se em burros ou mulas (que descubro responderem coletivamente pelo termo “muar”), e servem como selas, mas mais grosseiras que as usadas em cavalos. Basicamente, são feitas de serapilheira e enchidas de palha, normalmente de centeio. São costuradas com fio forte de sisal, e seus enfeites dependem do uso a que se destinem. A da foto, por exemplo, é uma albarda mais festiva.

Mestre Zé é como um hipopótamo pigmeu da Libéria. Quase extinto. Vive numa aldeia retirada ao norte do Algarve, de nome que me foge, mas que se parece com Alcoutim, vila onde o impiedoso avanço árabe ainda se cheira nas esquinas. Mestre Zé é albardeiro.

Antigamente, conta-me, era diferente. Chegavam os clientes aos magotes, que a fama dele corria a terra. Albardas? É com o Mestre Zé, lá de perto de Alcoutim. E chegavam os mais ricos e os mais pobres, aqueles montados em cavalos com a mula puxada atrás deles. O olho experiente de Zé media então a altura da cernelha do animal e a inclinação das espáduas, para mentalmente fazer as contas e saber qual o cepilho correto, a patilha exata, se um suador mais aberto ou fechado, dependendo da largura do tórax. A albarda perfeita para o animal à sua frente. A que se encaixa e alivia o animal das cargas que precisa carregar em seu lombo, inclusive as cangalhas que a vida aqui  e ali sempre impõe. Nisto tudo Mestre Zé não levava mais que alguns minutos.

Mas todo animal tem dono, e os muares não são exceção. E às vezes Mestre Zé precisou curvar-se à vontade do dono, àquilo que ele acha melhor e de melhor lucro para o animal que carrega consigo como se uma parte de si próprio fosse. Aliás, Mestre Zé gosta desses donos que olham para seu animal como quem olha para sua própria alma, ou seu próprio coração. Mesmo sendo pra esses que mais é difícil trabalhar, disse-me ele nesse dia de prosa algarvia, porque nada os convence de que precisem de uma albarda mais larga. Para esses clientes, Mestre Zé descansa do que vê e do que sabe, e faz a vontade ao dono – inclusive para não o perder, porque são mais raros os que nos dias de hoje procuram uma albarda. E é por isso, filha, conclui Mestre Zé, que o povo diz: albarda-se o burro à vontade do dono.

6 respostas

  1. Bom dia queridAna,
    Bom saber disso para o nosso ofício de ensinar. Olhar o aprendiz como "o dono" (do mágico equipamento de aprendizado) e alabardar-lhe no formato mais apropriado, eis aí boa parte de nossa arte, concorda?
    Bjs e toda luz, lv u!
    Neca Terra

  2. Minha amada amiga, meu avô Alcebíades, vulgo sinhô Bio foi um albardeiro e tb seleiro e cangalheiro além de muleiro, foi ele tb o meu contador predileto de histórias, enquanto sentado no seu banco, trabalhando o couro, a madeira, a palha, enfim, no seu ofício do ganha pão!
    Assim enchia me a alma de sementes de imaginação!

  3. É assim a escrita da Ana: "enche a alma com sementes de imaginação", que de Poesia então…
    Obrigada
    Tia Luiza, orgulhosa e espantada com tanto talento!

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