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A Sopa

As mãos de Vó Chica trazem novidades, um cheiro de alecrim que não lhe costumo sentir. Veio assim, de repente como é da qualidade do alecrim, abrindo espaços por entre quaisquer outros cheiros. Suas agulhas pequenas espetam-me os dedos. Preparo-me para acordar para as palavras.

Esta amiga querida chega com os olhos entreabertos; não sei bem para onde dirige o seu olhar, não distingo as cores nem as formas quando ela faz isso. Mas sei que é anunciador de mistérios, esse estado. E ela fala da Sopa. Logo depois de falar da água.

Prato forte congregador de forças. Vó Chica já disse muita coisa sobre a Sopa, este cozinhado que se prepara no Terreiro toda sexta-feira, e se distribui a muitas famílias. Já disse que não era fortuito serem pescadores os que primeiro a receberam – o meio água é seu meio de sustento, dentro d’água vivem, dentro d’água vivemos, dentro de nós tanta água, sopa que nos espelha. Água que é alimento, e não apenas matadora de sede. Água que se impregna facilmente com aquilo que pensamos, sentimos e dizemos – e assim, dizia-nos e alertava, que o silêncio é amigo do domínio da fala, e o trabalho sobre si mesmo, esse esforço silencioso, vai parar dentro da Sopa, enquanto se lavam, cortam, picam, fatiam todos os legumes: esse silêncio é o mais importante tempero da Sopa.

Tudo boia nessa água primordial construída ao longo das horas, mesmo os frascos transparentes, vindos da rocha tornada areia, soprada no fogo, fazendo nascer o vidro. A dureza frágil precisada de cuidado para transportar, para lavar depois, preparar para a semana seguinte. Não se desvincular da ação porque ela ainda não terminou, e nem se manter aceso no que já chegou a seu fim. O desinteresse, dizia-nos Vó Chica, faz emergir a verdadeira entrega. Cozinhou, embalou e foi-se. E o frasco volta, como tudo na vida volta, e o frasco vai, e a Sopa permanece na memória, na célula, no sorriso, na vida. Como uma fragrância, uma aragem, um som ao longe do motor de um carro a desaparecer nas curvas da serra.

A abundância da água, veículo livre, enche as panelas, lava as coisas, lava a alma, as mãos e a garganta, quando resseca das palavras amargas. Na Sopa e na vida, tudo é água. Tudo se dilui, escapa por entre os dedos. É preciso consciência, atenção e prumo.

“Mas há mais”, diz hoje Vó Chica. “Tudo isso eu já disse. Há mais. E esse mais está na persistência e na entrega ao trabalho, na superação do cansaço e da indolência. Filha, não esquece”, diz ela, e eu registro suas palavras tal qual as ouço: “eu estou se tu estás, ao teu lado sempre, só não posso valer-te quando decides e dizes que não podes, não consegues, não vais abrir os olhos para ver-me nem as mãos para dar-te. Só assim não posso valer-te. A Sopa te devolve à tua consistência aquática, aqui onde me encontras, se me olhas com teus verdadeiros olhos e percebes as corredeiras, as curvas calmas, as cachoeiras e as águas paradas dentro da panela, onde pensas ser boa por estares a cozinhar uma sopa. Não és boa, és água. Há mais, eu te garanto, porque é o espírito que vive na água, é dele que tudo se impregna, e se não estás, ou não estás mesmo quando te apresentas, nada posso dar-te. Só na experiência uma e outra e outra vez poderás desgrudar-te do que achas já saber e passar a descobrir o outro lado das coisas. Porque há sempre um outro lado, um para cada um de todos, intransferível, indizível. Só no silêncio de cada alma e de cada coração. Só assim consegues aprender a escutar-te. Quando te calas.

Não te distraias, não busques desculpas e justificativas. Já firmaste os acordos que precisavas, agora é não te perderes pelas ilusões que conheces e pelas que ainda virão agradar-te ao longo do caminho, para que desistas dele. A minha mão na tua, a tua na minha. Metade do que digo não pronuncio, e é a essa parte que deves escutar e fazer seguir adiante. Assim sou e assim te acompanho, e aos teus.”

E de repente a água do poço borbulha, lá no fundo da terra, ninguém diria que isso é possível, não se escuta a água borbulhar no fundo de um poço. Mas eu a escuto, e ela diz com sua voz de gota que vai subir, porque é da sua natureza. Vó Chica segreda-me ao pé da água, meus pés na água. A luz da mata não é a mesma, arroxeia de um lado, esbranquiça do outro. A casa dos Pretos-Velhos, do outro lado desta água que tudo transformou, brilha tal qual cristal encrustado no verde, e as matas cantam, os pássaros acompanham e a vida silenciosa emerge na nascente, sem ruído nenhum, como se não quisesse fazer-se notar. Vó Chica esgueira-se por detrás desse espaço em silêncio, numa curva tênue assim que abro os olhos.

 

Fotografia: Laís Ferreira

4 respostas

  1. “A minha mão na tua, a tua na minha. Metade do que digo não pronuncio, e é a essa parte que deves escutar e fazer seguir adiante. Assim sou e assim te acompanho, e aos teus.”

    Estou me esforcando para escutar o que não dizes para seguur adiante.
    Obrigado, Ana

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