Vez por outra gosto de reler um texto de Paulo Freire, um texto curto, fruto de uma palestra dada em 1981 e incluída anos depois pela Cortez num pequeno livro: “A importância do ato de ler”. Dos três artigos que compõem o volume, é o primeiro que gosto de ler e ler outra vez.
Volto a ele pelo significado profundo que teve em diversos momentos da minha vida, da minha própria leitura do mundo que me cerca, de mim mesma dentro desse mundo, desse mundo que se avoluma e de repente me toma inteira por dentro. Paulo volta, nesse texto, à leitura dos primeiros signos da sua vida, a casa em que nasceu no Recife, as avencas de sua mãe, as grandes árvores no quintal que o viram pôr-se de pé, andar e aprender a ler – assim, nessa sequência singela e simples. Uma infância permeada pelos signos que ele, como ninguém, soube entender conectados a todos os outros que constroem a nossa vida, representações da realidade onde inclui com especial reverência as linguísticos – a “palavramundo”. Textos encarnados no “canto dos pássaros, na dança das copas das árvores anunciando tempestade, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores”. E numa transição terna, numa saudade que apelida de “mansa”, Paulo absorve e multiplica, junto a esses signos, o da leitura dos livros que inspiraram, ampliaram e modificaram a sua representação do que é o mundo.
Guiada pelas suas mãos, passeio mais uma vez pelos signos da leitura do meu próprio lugar e tempo; os que me rodeiam agora e os que já me deixaram, deixando-me impressa com a sua forma passada, sem saber então o que viria a ser de mim sob a sua marca. Anos atrás, num dos momentos de releitura desse texto, decidi lê-lo com um grupo de alunos – jovens que pensaram não entender o que dizia, que relação teria tudo aquilo com eles próprios, sua própria vida, a sua necessidade de leitura construindo-se ainda tão diáfana. Há dias, um deles me escreve, e me diz que de repente se lembrou de tudo aquilo, do que Paulo Freire dizia, e se surpreendeu de não ter percebido então o que no fundo já tinha feito sentido. Só que ele não percebera. Mas guardara.
A verdade é que passamos a vida lendo, às vezes sem consciência disso, e essa leitura acomoda-se dentro de nós à espera que demos por ela. Com sorte, mais tarde ou mais cedo é isso que nos acontece. A alguns a tarefa de ler como comumente se entende a leitura é custosa, doída: livros, textos compridos, que demandam concentração que às vezes falha, numa obrigação que nenhuma leitura comporta, porque ler é condição libertária, ave bala cabralina exigindo o oxigênio da sua sobrevivência. Em todos os outros momentos, seguimos vida afora lendo, sem saber que lemos – lemos as indicações da vida no que é óbvio e no que nem tanto, lemos os signos e as contas, os búzios, as estrelas, as cartas, os olhares, o toque do outro fundo em nossa carne. Lemos de cabeça inclinada e coração em sangue, a pele exposta vulnerável, as carícias e as palavras da vida numa aragem que não se esgota nem mesmo quando já passou. Gosto de pensar que, no dia de hoje, conseguirei ocupar-me por inteiro com a leitura do que me rodeia; uma leitura leve, correta, consciente, consequente, daquele tipo que me liberta, disponibiliza e autentica, num passeio que me leve aos mesmos bons caminhos que Paulo Freire consagrou sob seus pés.
Uma resposta
Sim, hj pensei nisso, algo que me foi tentado ser dito, e que na época não vi tanta importância, não havia realmente entendido. E sim – guardei… hoje isso volta, com total importância! Aprendo assim a ter paciência e a esperar… tudo tem seu tempo! É só permanecermos atentos!