Cidade de Goiás

O bom é chegar a meio da noite, debaixo de chuva – sempre miúda e sempre presente.

A luz amarelada dos postes baixos e quase antigos, a neblina, a quietude da cidade que já dorme, o marulhar do rio abaixo da ponte atravessam-se com o coração inquieto. As requisições alheias, as infantis e as outras, estão à espreita logo depois da primeira esquina. Mas a Cidade transpassa todos os sentidos e reconhece-se, de repente, em todas as demais cidades que carrega na história sonhada das suas pedras.
De manhã, é preciso reconstruir por dentro o que se ultrapassou à chegada, mas a combinação da luz, da neblina, da chuva, do rio, agora que é dia, escondeu-se atrás dos véus. As coisas voltaram aos seus lugares, o passado nunca se recupera.
Passa-se o dia à procura. Cada museu, cada nova casa descoberta, cada recanto – e a devolução do que foi roubado não acontece. Chove de novo, depois o sol, a mata a entrar pelos longes atrás dos telhados, o céu a abrir-se e fechar-se logo a seguir, brincadeira boba entre nuvens e oceano azul.
Num instante, as paredes voltam ao seu por dentro antes de anoitecer. Quando se chega à ponte, e logo depois à casa que se debruça sobre ela, quando se entra no porão que guarda as águas, quando num relance se descobrem o vestido pendurado como se ontem, o cobre rebrilhando no fogão à espera da colher que não vem, a cadeira e a muleta no encontro solidário entre a paciência e a ausência, volta a véspera inteira – e de repente são todas as cidades que se deixaram pelo caminho, aquelas a que se retornará e aquelas a que não, tanta coisa que se conhece e esquece.
O fim da tarde anoitece todas as coisas. Os pássaros acolhem-se aos galhos que rodeiam as margens do rio, seu chilrear ensurdecedor; os sinos da igreja do rosário já se calaram há tempos, mas ainda se ouvem, atrás deles. Cai a noite na Cidade, e agora pode-se olhar esta cidade sem a perseguição das demais. Agora, sobressaem os contornos familiares, as retas e as curvas, mas que são só dela. Só isso, o que lhe é único, serena. Só isso, e mais nada, sem passado e sem futuro. Depois, dormir, e depois, seguir viagem.

Respostas de 5

  1. COMO PARTICIPAR NAS EDIÇÕES DO EPISÓDIO CULTURAL?

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  2. Querida Ana,

    Essa cidade faz parte das minhas vidas e eu fui até ela resgatar a pedra do calçamento da ladeira da Igreja da Boa Morte, dos beirais das janelas das irmãs que moravam no beco do calabrote, Dondoca e Minga "Zóio de Prata", da imagem da casa velha da ponte..

    Minha pequena lembrança da voz maior da Cidade de Goiás:

    Velho Sobrado

    Um montão disforme. Taipas e pedras,
    abraçadas a grossas aroeiras,
    toscamente esquadriadas.
    Folhas de janelas.
    Pedaços de batentes.
    Almofadados de portas.
    Vidraças estilhaçadas.
    Ferragens retorcidas.

    Abandono. Silêncio. Desordem.
    Ausência, sobretudo.
    O avanço vegetal acoberta o quadro.
    Carrapateiras cacheadas.
    São-caetano com seu verde planejamento,
    pendurado de frutinhas ouro-rosa.
    Uma bucha de cordoalha enfolhada,
    berrante de flores amarelas
    cingindo tudo.
    Dá guarda, perfilado, um pé de mamão-macho.
    No alto, instala-se, dominadora,
    uma jovem gameleira, dona do futuro.
    Cortina vulgar de decência urbana
    defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
    – um muro.

    Fechado. Largado.
    O velho sobrado colonial
    de cinco sacadas,
    de ferro forjado,
    cede.

    Bem que podia ser conservado,
    bem que devia ser retocado,
    tão alto, tão nobre-senhorial.
    O sobradão dos Vieiras
    cai aos pedaços,
    abandonado.
    Parede hoje. Parede amanhã.
    Caliça, telhas e pedras
    se amontoando com estrondo.
    Famílias alarmadas se mudando.
    Assustados – passantes e vizinhos.
    Aos poucos, a " fortaleza " desabando.

    Quem se lembra?
    Quem se esquece?

    Padre Vicente José Vieira.
    D. Irena Manso Serradourada.
    D. Virgínia Vieira
    – grande dama de outros tempos.
    Flor de distinção e nobreza
    na heráldica da cidade.
    Benjamim Vieira,
    Rodolfo Luz Vieira,
    Ludugero,
    Angela,
    Débora, Maria…
    tão distante a gente do sobrado…

    Bailes e saraus antigos.
    Cortesia. Sociedade goiana.
    Senhoras e cavalheiros…
    -tão desusados…
    O Passado…

    A escadaria de patamares
    vai subindo… subindo…
    Portas no alto.
    À direita. À esquerda.
    Se abrindo, familiares.

    Salas. Antigos canapés.
    Cadeiras em ordem.
    Pelas paredes forradas de papel,
    desenho de querubins, segurando
    cornucópia e laços.
    Retratos de antepassados,
    solenes, empertigados.
    Gente de dantes.

    Grandes espelhos de cristal,
    emoldurados de veludo negro.
    Velhas credências torneadas
    sustentando
    jarrões pesados.
    Antigas flores
    de que ninguém mais fala!
    Rosa cheirosa de Alexandria.
    Sempre-viva. Cravinas.
    Damas-entre-verdes .
    Jasmim-do-cabo. Resedá.
    Um aroma esquecido
    – manjerona.

    Cora Coralina

  3. Querida Ana,

    Essa cidade faz parte das minhas vidas e eu fui até ela resgatar a pedra do calçamento da ladeira da Igreja da Boa Morte, dos beirais das janelas das irmãs que moravam no beco do calabrote, Dondoca e Minga "Zóio de Prata", da imagem da casa velha da ponte..

    Minha pequena lembrança da voz maior da Cidade de Goiás:

    Velho Sobrado

    Um montão disforme. Taipas e pedras,
    abraçadas a grossas aroeiras,
    toscamente esquadriadas.
    Folhas de janelas.
    Pedaços de batentes.
    Almofadados de portas.
    Vidraças estilhaçadas.
    Ferragens retorcidas.

    Abandono. Silêncio. Desordem.
    Ausência, sobretudo.
    O avanço vegetal acoberta o quadro.
    Carrapateiras cacheadas.
    São-caetano com seu verde planejamento,
    pendurado de frutinhas ouro-rosa.
    Uma bucha de cordoalha enfolhada,
    berrante de flores amarelas
    cingindo tudo.
    Dá guarda, perfilado, um pé de mamão-macho.
    No alto, instala-se, dominadora,
    uma jovem gameleira, dona do futuro.
    Cortina vulgar de decência urbana
    defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
    – um muro.

    Fechado. Largado.
    O velho sobrado colonial
    de cinco sacadas,
    de ferro forjado,
    cede.

    Bem que podia ser conservado,
    bem que devia ser retocado,
    tão alto, tão nobre-senhorial.
    O sobradão dos Vieiras
    cai aos pedaços,
    abandonado.
    Parede hoje. Parede amanhã.
    Caliça, telhas e pedras
    se amontoando com estrondo.
    Famílias alarmadas se mudando.
    Assustados – passantes e vizinhos.
    Aos poucos, a " fortaleza " desabando.

    Quem se lembra?
    Quem se esquece?

    Padre Vicente José Vieira.
    D. Irena Manso Serradourada.
    D. Virgínia Vieira
    – grande dama de outros tempos.
    Flor de distinção e nobreza
    na heráldica da cidade.
    Benjamim Vieira,
    Rodolfo Luz Vieira,
    Ludugero,
    Angela,
    Débora, Maria…
    tão distante a gente do sobrado…

    Bailes e saraus antigos.
    Cortesia. Sociedade goiana.
    Senhoras e cavalheiros…
    -tão desusados…
    O Passado…

    A escadaria de patamares
    vai subindo… subindo…
    Portas no alto.
    À direita. À esquerda.
    Se abrindo, familiares.

    Salas. Antigos canapés.
    Cadeiras em ordem.
    Pelas paredes forradas de papel,
    desenho de querubins, segurando
    cornucópia e laços.
    Retratos de antepassados,
    solenes, empertigados.
    Gente de dantes.

    Grandes espelhos de cristal,
    emoldurados de veludo negro.
    Velhas credências torneadas
    sustentando
    jarrões pesados.
    Antigas flores
    de que ninguém mais fala!
    Rosa cheirosa de Alexandria.
    Sempre-viva. Cravinas.
    Damas-entre-verdes .
    Jasmim-do-cabo. Resedá.
    Um aroma esquecido
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