Com dias de atraso

Portugal foi às urnas no passado dia 27 de setembro. Foi provavelmente um dia de sol, como todos aqueles em que eleições acontecem nesse meu país, dia de bandeirinhas de todas as cores, embora o laranja às vezes tenha se imposto agressivamente. Mas não desta vez.

Deve provavelmente ter sido um bom dia para apanhar um comboio e ir até à linha de Cascais; ou de subir pela rua do Alecrim acima, chegar ao Chiado e escolher o melhor lugar da Brasileira para beber uma bica; ou ainda subir ao Castelo e pedir uma imperial para amainar a sede das escadarias e ajudar a descortinar o Tejo inteiro na vista em frente. Aparentemente, a maioria dos portugueses decidiu-se por qualquer um desses programas ou ainda outro, e esqueceu-se de votar, porque – leio nos jornais – nunca os níveis de abstenção foram tão altos.

Hoje, quando abri a minha caixa de correio, descobri a possibilidade de um motivo, ainda que subjetivo. Sem querer, vou também eu fazer parte dessa triste estatística, incorporando-me sem vontade aos mais de 40% de conterrâneos meus que preferiram os últimos raios de sol por todo Portugal a exercer o direito cívico cuja conquista tantas vidas custou nos tristes dias da ditadura.

Para ser exata, poder votar, eu posso – mas não o farei. Hoje, que já é dia 7 de outubro, é que eu recebo a minha querida cédula, com partidos dos quais nunca ouvi falar entre outros em que já tive o prazer de votar. Convenhamos que é difícil encontrar algum ânimo para votar numa eleição que já teve o seu resultado mais que divulgado e confirmado. Quase que preciso olhar-me no espelho pra me certificar de não fazer parte de uma dessas piadas que circulam por aí, e mesmo à custa de poder estar a contribuir para a criação de mais uma, precisei mesmo deste desabafo, à procura de algo que me desdeprima da situação ridícula que o correio me apresentou.

Pus-me a lembrar das poucas situações de voto que pude exercer, porque raramente estive onde se conjugassem uma eleição acontecendo e eu própria presente e habilitada a exercer tal direito. Ainda assim, sempre me empolguei com todas elas, em qualquer continente ou país, buscando aquela legenda ou aquele ideário que mais se aproximasse das minhas experiências dentro de uma revolução feita de flores. Essa situação de torcida sem direito a voto nunca me chateou, nem me fez diminuir a vontade de uma bandeira ou uma estrela vermelha pendurada em algum lugar, quando foi o caso. Mas essa de ser convocada ao voto desta maneira, sinceramente e como diria meu tio Zé, ultrapassou-me as medidas.

Para me consolar, porque só está crônica talvez não o faça, decido usar os serviços telefônicos para desabafar com quem está do outro lado do Atlântico e, para minha surpresa, nem a facção mais vermelha da minha família se solidariza: “ó filha, mas tu querias votar pra quê? Então não vês que são todos iguais? Ó Manela!” – e desta feita já largou o telefone e fala com uma das minhas tias que deve estar sentada à mesa redonda da casa da minha avó ocupada com uma interminável toalha nova de crochê – “Olha a coitada da Ana ao telefone a queixar-se que só hoje é que recebeu a cédula da eleição!”. Não demora, já sei, a família inteira ri-se de mais uma das minhas coitadas ilusões, “parece até quando eras criancinha e acreditavas em tudo!”

Não sei mais para quem me virar, e então lembro-me de uma das canções que me cantavam quando eu era pequena e que se liga ao assunto; vou à procura do LP que se salvou das diversas etapas de filhos que se encantaram com eles e, além da música, cheia dos ruídos da gravação e do tempo ao passar, encontro uma dedicatória do meu pai, que foi quem me deu esse disco. E, já se vê, uma coisa leva a outra.

Junto com o envelope da cédula, recebi também a propagada eleitoral do atual partido socialista, o que me dá uma insuportável melancolia pelo outro partido socialista que se escondeu não sei bem em que localidade portuguesa, mas com certeza não se senta à mesa desse atual. Nunca fui eleitora do partido socialista, mas meu pai o foi durante anos, certo de que era certo, e embora eu me preferisse um pouco mais à esquerda, nunca me foi de todo antipático o “Bochechas”, que é como o sempre-socialista Mário Soares é chamado ainda hoje, por motivos óbvios.

Além de eleitor do PS durante anos, meu pai chegou a candidatar-se à presidência da Câmara (algo próximo ao nosso prefeito) da cidade onde nasci, o que me fez viver a situação estranha, ainda que à distância, de ver estampado em outdoors, pelos cenários da minha infância,o sorriso triunfante de meu pai, antes do triunfo propriamente dito, o que já dizia meu avô (com razão que depois se confirmou) se tratar de “péssimo agoiro”.

O seu passado de bon vivant valeu a meu pai algumas revelações inesperadas de fatos de outrora, e o acúmulo delas foi o principal responsável, disse-me ele, pela sua derrota – apertada, mas ainda assim derrota. Queixou-se, e ninguém o contradisse, de ter sido vítima da incompreensão de uma cidade provinciana, atrasada e preconceituosa, que nada entendia da necessidade da juventude se contrapor ao poder e ordem estabelecidos, trilhando seus próprios caminhos e soluções. Achei-lhe graça, lamentei internamente que essa sua consciência não tivesse atingido a seu tempo a minha própria juventude, mas lembro-me de, sensibilizada pela sua incompreensão melancólica dos rumos políticos da nação, até ter lhe dado razão.

Lá onde está deve rir-se desta minha cara apatetada de frente para esta cédula, que curiosamente tem o punho fechado do PS em primeiro lugar. Ri-se, imagino, pelo tanto que deve ter descoberto do poder de maya, a ilusão, nos passos que deu ou achou que deu, ficando tantas vezes no mesmo lugar imaginando ter avançado longas milhas. Sinto-o a meu lado, quase que lhe ouço a gargalhada, e é por isso que vim desenterrar esta crônica que já tem na verdade semanas de velha – mas é que sei que há amigos dele à espreita destas páginas, e eles merecem cada uma destas letras, e eles também como eu haverão de rir-se ao lembrar das boas histórias que o espírito inquieto e perturbador de meu pai deixou de epitáfio à sua vida. Um abraço aos amigos, seu legado mais precioso.

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