Poema da palavra exata
Eu dou-te uma palavra, e tu jogarás nela
e nela apostarás com determinação.
Seja a palavra “biltre”.
Talvez penses num cesto,
açafate de ráfia, prenhe de flores e frutos.
Talvez numa almofada num regaço
onde as mãos ágeis manobrando as linhas
as complicadas rendas vão tecendo.
Talvez num insecto de élitros metálicos
emergindo da terra empapada de chuva.
Talvez num jogo lúdico, numa esfera de vidro,
pequena, contra outra arremessada.
Talvez…
Mas não.
Biltre é um homem vil, infame e ordinário.
São assim as palavras.
Quem hoje me ensina, tardia e repentinamente, é este poeta, António Gedeão. Releio seu “Poema da palavra exata” depois de muito tê-lo lido. Depois de muitas aproximações. Depois de ter-me deitado com ele e levantado na manhã seguinte, inúmeras vezes, pensando ter conseguido degustá-lo em toda a sua extensão.
O poema parte da oferta de uma palavra: “Eu dou-te uma palavra e tu jogarás nela/e nela apostarás com determinação.” Pessoas são como palavras, e é isso que o poema descortina diante de mim, numa clareza que assusta: recebemos uma pessoa, e nela (nos) jogamos e apostamos com determinação.
“Seja a palavra biltre”, continua. Fala de uma palavra, o poema da palavra exata. A palavra biltre. E, como se fosse uma pessoa, a quem se confere beleza, sentido, forma, construímos significados em torno da sua sonoridade, da coloração mais ou menos esmaecida com que impregna o ar à nossa volta. Talvez biltre possa ser, diz Gedeão, um cesto prenhe de flores e frutos. Talvez uma almofada delicadamente amparada num regaço, onde mãos ágeis tecem complicadas rendas. Talvez um inseto a emergir suas metálicas antenas da terra empapada. Um jogo de bolas de vidro.
Uma palavra, como uma pessoa. A quem construímos, com a delicadeza da renda, uma atmosfera respirável. A quem dedicamos o pensamento atento. A quem queremos ver com os olhos que vêm o que talvez exista, sem nos preocuparmos de que a possibilidade se invente realidade. Porém, por vezes, a atmosfera é estéril. Enganosa. Nada nela respira, a não ser essa nossa dedicação e disposição. Porque talvez (e há tantos talvez nesse poema quantos talvez existam naquilo que vemos do outro) não haja frutos nesse cesto, talvez nem sequer cesto exista, nem regaço, muito menos amparo. Mas nós apostamos com determinação, porque a palavra-pessoa nos encanta, e como encantados agimos. Como encantados negamos as evidências que tentam romper a cortina translúcida atrás da qual se esconde a palavra-pessoa.
Não. “Biltre é um homem vil, infame e ordinário.” Nada do que lhe construímos altera a sua substância primordial, o seu caráter, a sua essência. Jamais poderá um biltre ser um delicado cesto, um amoroso colo, por muito que o amemos e lhe insuflemos ar puro. Nada fará com que um biltre deixe de ser aquilo que nasceu sendo. As pessoas, como as palavras, prestam-se aos talvez que lhes emprestamos. Talvez o sofrimento, talvez os revezes da vida, talvez o silêncio signifique palavra e a palavra signifique amor – e assim nos embrenhamos nas matas densas da ilusão.
Não. “Biltre é um homem, vil, infame e ordinário.” Temos dicionários que explicam as palavras. Que as tomam suspensas no ar da sua origem e as expõem, nuas e cruas e verdadeiras. Mas não há manuais de etimologia que nos elucidem as almas das pessoas, o seu passado, o lugar de onde vêm, o senhor a quem servem. E pensamos que o cheiro que sentimos ao encontrá-las é delas, e não do nosso próprio olfato. Pensamos que o gosto com que as degustamos é delas, e não da nossa capacidade de construir sabores.
Num susto, a palavra revela-se no poema, e a pessoa revela-se no dia. Porque, diz o poeta, “são assim as palavras”. Assim como as pessoas, que de repente se apresentam, como biltres vis, infames e ordinários. De repente reconhece-se a estatura e o peso das pessoas, e o alcance que tem essa palavra traiçoeira, reconhecer. Depois que os véus se rasgam, e que a confiança no talvez se desfaz, não há volta atrás. Aquilo que é, permanece no tempo.