Pela primeira vez, escrevo uma crônica encomendada. Alguém (não contarei quem) sugeriu-me dias atrás que escrevesse sobre companheirismo. Artigo em falta, disse-me no email mandado. E eu fiquei matutando um tanto, atrapalhada com o pedido, inusitado, e com a falta de inspiração, que espero se resolva no meio desta madrugada. O pedido foi pra lá de simpático, quero atendê-lo rápido!
Pensei (um tanto obviamente) em buscar as raízes primeiras da palavra e o resultado da pesquisa agradou-me apenas 50%. Cum pani foi onde consegui chegar; claro que logo me atiça a vontade de convidar alguém para comer alguma coisa, não necessariamente o pão do qual o latim fala – mas tenho um trânsito atravessando a minha carta astral, que me induz a refrear-me e a conter-me, juntando-se em coro insuportável a esse bom senso que insiste em me lembrar que não invente nenhuma novidade para este fim de semana. É melhor que procure formas feitas de ócio puro e simples, ainda que não me permitam transformar convidados em companheiros com quem divida (ou some, multiplique, potencialize, digira) o pão.
Companha (pus-me a brincar com a palavra, buscando-lhe as derivações) é um camonismo em desuso, respondendo por “tripulação de barco” ou “agremiação de pescadores”, lá pelos idos de mil quatrocentos e alguma coisa. Um pouco antes no tempo, descubro que a palavra conpaneyro tem registro escrito na Ibéria do século XIII, e que as primeiras conpanyas foram organizadas por gente em viagem precisando proteger-se dos assaltos das estradas – ou dos mares, séculos depois. Gente que se juntava por proteger-se e por viajar uns em companhia dos outros, dividindo o que levassem consigo ou encontrassem durante o tempo em que estivessem juntos.
Começo a perceber, ao de longe, de onde o motivo para o pedido pela crônica, porque essa mesma pessoa me dizia, há algum tempo, o quanto a solidão a ataca quando menos espera, o quanto sente falta da proteção do outro a seu lado, e o quanto lamenta que, ao contrário de antes, lhe falte o ânimo para ir atrás dela. Os anos vão chegando, e passando, e talvez a cada dia fique mesmo mais difícil andar em direção ao outro, ainda que pareça que o contrário fosse mais óbvio e fácil, já que em teoria quanto mais (nos) conhecemos mais fácil seria sermos pertos uns dos outros em vez de longes.
Talvez por isso esse filme especial, L’heure d’ été, tenha cuidado tanto da cena em que um encontro em volta de uma mesa, para um almoço celebração, evoca outro, em volta da mesma mesa, trazendo para perto companheiros partidos. A mesa e o pão dividido entre si, e passa-me pela cabeça que companheirismo seja o refinamento da amizade no seu mais alto grau, talvez esse pão que se divida seja o do próprio coração, talvez o alimento supremo, talvez a inspiração mais sublime, talvez o mais perfeito ato de amor, se originem do ato de ser companheiro. Companheirismo sugere proximidade, cumplicidade, a felicidade pela felicidade alheia, o acordar intranquilo à noite porque nem se sabe, mas se pressente a agonia do outro. Já não é cedo, quem as pediu só lerá estas linhas daqui a algum tempo, mas de longe e espero que não irremediavelmente tarde, quem sabe elas possam nos proteger, a ela, a mim, neste exercício feito palavras escritas, fora das barreiras do tempo, do espaço e das circunstâncias, presente concreto entrincheirado junto ao coração companheiro que quer aninhar-se no outro.
Respostas de 2
Ana,
Sua crônica merece ser o começo de outra, ou outras, pois que o assunto é grande e as palavras com que o trouxe o tornam ainda maior.
Os séculos se passaram, as viagens se modificaram em tempos e modos, mas ainda precisamos ter uns aos outros como companheiros de jornada, senão para nos protegermos mutuamente do que vem de fora, como nas trilhas incertas e perigosas da idade média, e antes dela, certamente para nos ampararmos reciprocamente das emboscadas armadas nas trilhas incertas e perigosas daquilo que vem de dentro de nós mesmos. Também para nos divertirmos juntos nas curvas seguras e nos festejos das chegadas.
Talvez o desejo de não deixar passar em branco esses momentos citados por último é que nos façam não conseguir não inventar nada para o próximo final de semana.
Nesses caminhos que anda, conte comigo se precisar. Estamos ali 2 ruas abaixo, Cris e eu (eu menos – em tempo – do que a Cris).
Ivan
Ana,
Sua crônica merece ser o começo de outra, ou outras, pois que o assunto é grande e as palavras com que o trouxe o tornam ainda maior.
Os séculos se passaram, as viagens se modificaram em tempos e modos, mas ainda precisamos ter uns aos outros como companheiros de jornada, senão para nos protegermos mutuamente do que vem de fora, como nas trilhas incertas e perigosas da idade média, e antes dela, certamente para nos ampararmos reciprocamente das emboscadas armadas nas trilhas incertas e perigosas daquilo que vem de dentro de nós mesmos. Também para nos divertirmos juntos nas curvas seguras e nos festejos das chegadas.
Talvez o desejo de não deixar passar em branco esses momentos citados por último é que nos faz não conseguir não inventar nada para o próximo final de semana.
Nesses caminhos que anda, conte comigo se precisar. Estamos ali 2 ruas abaixo, Cris e eu (eu menos – em tempo – do que a Cris).
Ivan