Devo já estar sendo redundante (e com o uso do gerúndio tudo tende a piorar…), mas dificilmente poderia ir deitar-me sem registrar numas poucas linhas o quão incrível é a maneira como todas as coisas da vida se encaixam, se permitimos que o façam. Muitas vezes nem sequer estamos atentos, e por isso deixamos passar ao largo os fios que nos conectam umas coisas às outras. Mas em alguns momentos temos a sorte de estar focados, e é aí que podemos intuir por inteiro o que não é óbvio.
Hoje à noite, no meio de uma fala que nada tinha a ver com o que lhe veio na sequência, pus-me a pensar (porque era disso que se tratava) no poder quase insano do silêncio, das coisas criadas que jamais assumiriam qualquer forma não fosse ele, o silêncio. Pessoas que se movimentam através dele em conjunto, e por isso alcançam milagres de construções geométricas precisas. Era disso que tratava a fala. Eu pus-me a recordar momentos de silêncio tão importantes e potentes que chegam a doer-me na alma, tamanha é a força e a sabedoria que trazem em si. Coisas pequenas, estreitos segundos – e mundos cheios de força e verdade. Tendo a recuperá-los depois, quando estou sozinha e o silêncio de mim mesma se instala ao meu redor, e de novo, quando são de fato solenes, me atingem esses mundos como a brisa marítima em busca de uma tempestade. Suave, insistente e premonitoriamente.
O que se conectou a isso depois, noite adentro, foi a possibilidade de realizar o como movimentos que em silêncio se desenvolvem nos devolvem velhos conhecidos vestidos de novas roupas, novas cores, novos ares que se lhes pegaram enquanto estiveram ausentes de nós. Há muitos dias em que me alimento dessa matéria, até porque tenho a preciosa incumbência de olhar para seres que em silêncio alcançam novos lugares; mas, em uns mais do que em outros, essa tarefa me enche de algo que eu não sei explicar, mas que me completa e me alivia da tortura dos dias que não compreendo. Como se, num filme de auto-ajuda eficaz, eu me convencesse sozinha de que tudo tem, mesmo, um sentido. É assim que age o sentido da auto-ajuda.
Para que se entenda, é sempre bom dizer que faz anos que deixei de pensar que tudo deva ter um sentido, ou pelo menos que tal sentido me seja acessível. Ao longo do tempo, e não sem as dores que tal descoberta considera, tornou-se mais fácil escorregar pelos tobogãs que o destino nos instala no caminho, mais compreensível aceder ao deslizar pelas penínsulas, terras estreitas, das nossas próprias indecisões e culpas, palmilhar cada centímetro que nos leva para mais perto do centro, que tantas vezes dói. Sem pensar no sentido, e abrindo os braços na direção do vento que sopra, sinto-me estranhamente mais livre, e mais estranhamente ainda duplamente consciente.
Estas segundas feiras musicais que se inventaram, e que aos poucos vão se transformando em nossas redondezas em momentos de troca e deleite com o prazer e a arte do outro, inauguram a semana com uma aura sensível de entrega e sorriso, no silêncio que demanda ouvir a vibração do outro. Não têm sido muitos os momentos em que podemos despir as almas dos temores e do julgamento alheio, e este abrir de portas é mais uma lufada de oxigênio pelo menos na minha vida, que tão agraciada tem sido, por tantas coisas e pessoas, nos últimos meses.
Vou deitar-me com a sensação de perenidade da imensa gratidão que sinto por estar onde estou, com quem estou e também com quem não estou. Tanto quanto dos silêncios, é dos vazios com que a vida nos presenteia que calçamos os nossos caminhos. Insisto em preenchê-los de palavras, porque me ajudam a achar a medida de quem sou e do que procuro. A sorte de ter quem me leia acompanha-me já há muitos dias, e chego à conclusão de que abrir os braços ao que vem tem sido a minha salvação.
Uma resposta
Não sei você, mas eu gostaria que o silêncio se instalasse mais vezes, e por mais tempo, em mim, de forma que houvesse espaço para que a metamorfose pudesse acontecer amiúde (não sei se "amiúde" continua tendo acento agudo e me recuso a olhar, agora,no manual da nova ortografia). Ele é, de fato, precioso.
Muito bacana a descrição da sua incumbência….sorte de quem é objeto da sua observação.