Do primário

Devo ter sonhado esta noite com a Sra. D. Esperança. Soava aos meus ouvidos infantilusos mais ou menos assim: Sôdona Esp’rança, por isso acho melhor mudar-lhe a grafia, para que nos entendamos todos em termos de sonoridades linguísticas. Sôdona Esp’rança foi minha professora do 1º ao 4º ano primário, na escola que foi também a de meu pai, e que leva o nome de um importante ceramista português: Rafael Bordalo Pinheiro. Vale a pena conhecer-lhe o “Zé Povinho”, figura adotada pela minha cidade (onde o tal Bordalo Pinheiro viveu e trabalhou durante anos) como sua expressão máxima, o que explica várias coisas a respeito dela e de seus habitantes. Googlem!, como diria meu amigo João Pedro.

Senti-me afortunada durante esses quatro anos, graças à professora da outra sala. Eram as duas multiseriadas: a da Sôdona Esp’rança, estava eu no 2º ano, dividia a sala ao meio com o 4º, a quem ela se dedicava quando nos mandava, a nós do 2º, fazer alguma coisa em silêncio e quietude, e vice versa. Sôdona Maria José, uma velha bem velha vestida de preto por toda a eternidade, era um terror de antipatia e mau humor. Assim, tendo por base essa comparação infeliz, eu me achava uma pessoa imensamente sortuda. E todos os meus colegas acenavam a cabeça aquiescendo quando esse era o tema.

Os métodos da Sôdona Esp’rança incluíam algumas coisas já abolidas na altura em outras partes do mundo, como a palmatória. Evoluída, no caso dela, que já tinha assumido um ar de régua de madeira. Mas doía do mesmo jeito. E eu era a sua escolha preferida, semana sim e semana também.

Qualquer coisa era motivo para ser chamada ao estrado – o pódio onde Sôdona se instalava em sua mesa, ao lado do quadro negro. Ora era não saber alguma coisa que devia, ora saber algo que não devia, ora a incapacidade de fechar a boca quando ela entendia que a (minha!) conversa tinha acabado. Esse era o maior dos meus pecados, a conversa, e acho que atualmente pago por ele, talvez perdoada dos juros, várias vezes por semana.

Eu fazia de tudo para escapar ao castigo, que realmente doía e deixava minha mão vermelha, às vezes arroxeada, dependendo da ira de Sôdona Esp’rança. Porém, também me elevava em importância, porque eu aguentava e nunca me viram chorar ao ser palmatoada. Minha mãe não sabia de metade – da vez em que percebeu a minha mão quase roxa, ia lhe dando uma coisa e invadiu a escola tão irritada, mas tão irritada, que eu decidi nunca mais lhe revelar o dia da palmatória, pelo escândalo que ela não precisava e nem eu.

Acho que, no fundo, eu julgava merecer tudo aquilo. No dia em que me pegaram saindo da janela do quarto das hóstias, por exemplo. Explico: anexo à escola, ou algo assim, funcionava algo ligado à igreja. (Nunca saber muito bem a origem de nada e andar um pouco acima das nuvens de segunda a segunda era também motivo de palmatória.) Uma das atividades desse anexo, de qualquer forma, era a feitura de hóstias, que gerava uma série de folhas todas furadas, redondinhas, como o que sobra quando se cunham moedas. Sobravam aquelas folhas e, acredite, eu acho que eram jogadas fora. Talvez tivessem outro fim, vai ver, mas eu jurava que eram jogadas fora. O que não tem a menor importância, porque a questão não eram as folhas, mas o apetite de todos por hóstias.

Com dois amigos, descobrimos um dia que a janelinha do topo da parede do quarto onde se faziam as tais das hóstias, ficava presa só no trinco, sem trancar. A janela era bem estreita, eu o era também, a menor e mais magra de todos, e lá fui a escolhida para a tarefa de escalar a parede. Entrei sem dificuldade, agarrei numa porção de folhas e dobrei-as bem dobradas para caberem no bolso do casaco. Escalei a janela de volta. Posso imaginar-me o sorriso de felicidade e triunfo, transmutado em pânico e apreensão quando vi que quem me esperava do outro lado, em vez de meus amigos, era o padre Viegas – e a Sôdona Espr’ança. Meus amigos? Evaporados, covardes que foram de me deixarem sozinha com a autoria, gestação e execução da ideia das hóstias. Esse foi um dos dias das minhas mãos arroxeadas, porque a aventura me rendeu palmatória dupla, esquerda e direita. E ainda por cima perdi as folhas furadinhas das hóstias.

É estranho, por histórias como essa que de tantas dariam um livro, que eu guarde boas lembranças de Sôdona Esp’rança. Já morreu, por isso sinto-me desobrigada de muita coisa, mas no fundo eu gostava dela. Desconfio que tenha a ver com a correção que fazia às redações semanais – sinceras , atentas e transparentes de um respeito que me alimentava. Ela orgulhava-se (disse-me a minha avó já eu estava longe desses dias) de ter sido ela a me alfabetizar, vivia contando casos da nossa vida em comum. Lembro-me de lhe ter ouvido um dia, em que a fui visitar já estava ela doente e já era eu mãe de vários, que nunca entendera como é que uma cabeça como a minha conseguia escrever coisas como as que escrevia.

Demorei a perceber a importância do brilho que iluminava os olhos da Sôdona Espr’ança quando me devolvia o caderno de redação, corrigido. Era uma mulher austera, de cabelo imenso e arredondado, alourado escuro, parecendo duplicar-lhe o diâmetro da cabeça, e nunca me dizia nada que eu pudesse entender como elogio. Mas seus olhos brilhavam, e por eles eu me alegro de ter guardado dois ou três desses cadernos, para poder agora olhar pra eles com outros olhos, que são hoje mais meus do que eram antes.

Por vias travessas, talvez sendo gentil com o passado e suas marcas, eu posso acreditar que Sôdona Espr’ança, com seus métodos um tanto brutais e secos, tenha me marcado o suficiente para me ajudar a encontrar o estuário da minha melancolia. Na maioria das vezes em que escrevo, é através dele que nado, é dele que luto por sair, demorando-me em braçadas que funcionam na minha vida como lufadas de oxigênio puro.

Uma resposta

  1. O meu estuário é o do inconformismo e da culpa, como bom colérico que sou (rsrsrs), e não o da melancolia, como o seu, mas também é meu campo de jogo quando a partida de futebol é uma folha de papel, melhor dizendo, hoje em dia, um monitor.

    Jogar às vezes dói.

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