Diz-me um amigo que a doença da sociedade é a sua incapacidade de emancipação, e não as variadas dependências que nos rodeiam. A incapacidade de pensar por si, de tomar posse da própria vida.
Desconfio que seja uma espécie de semeadura de palavras. Funciona. Como toda semeadura, brota. Multiplica-se em palavras que já li, e em outras que quero ler. Hannah Arendt aparece-me com o seu pensar-condição-humana, essa complexidade imensa tão simples. Aparece-me Steiner e seu pensar-livre. Sócrates com a frase célebre… Vou deixando que se amontoem dentro de mim, sem lugares onde guardar, sem espaços a preencher. Como em receita clássica de bolo, é bom usar os ingredientes à temperatura ambiente. Espero que tudo se acomode a este dia ora quente, ora frio. Tudo isso ainda é só tempero. Faltam os grandes volumes, os espaços solenes.
Não bato demais a massa, esperando que me segrede o que é mesmo que falta. Não falta, diz-me ela, ele já te disse tudo. E tu esqueces-te de que é de uma palavra apenas que necessitas. Sorrio para a massa, pensando eu em outras coisas que precisam apenas de uma palavra. E só por ter me distraído, a palavra que já estava corre atrás de mim.
Emancipar. Ali, logo no começo, antes da poluição do resto, e eu sem dar-me conta. Resisto à vontade de procurar-lhe de cara a etimologia, todo cuidado é pouco ao juntar as claras em neve à massa. Converso comigo, como se conversasse com o bolo pronto fumegando em cima do fogão.
Emancipar, digo-me, pode ser uma extraordinária quantidade de coisas. Pode ser o grito do Ipiranga, o grito de alforria, o quaes-sera-tamen. Um brado, de qualquer forma. Coisa que se dá em um momento. Emancipar pode ser uma ação repousada e cautelosa, uma assinatura em um papel que confere ao outro a liberdade que não tinha. Pode ser desculpa vazia para o (des)encontro com outro: não, não, eu não quero vínculos, não quero amarras. E os braços desfazem os laços, as vozes silenciam as gargantas, os olhos não veem os sonhos, e a liberdade de ação por nós mesmos escorre de uma banheira cheia de possibilidades. Tememos os nós, como se arriscássemos perder domínio próprio, e ficamos nos eus. Todos esses eus que vivem dentro de cada um, lutando pelas suas pequenas sobrevivências. Tudo, como de costume, uma faca de dois legumes.
Agora sim, a etimologia. Suculenta além da conta. Veja: emancipar é uma derivação complexa da palavra mancípio. (Mancípio é uma palavra portuguesa, e significa escravo. Mancípio é também, diz o dicionário, dependente, seja pessoa ou coisa.) Mancípio chega-nos diretamente do latim: é a junção de manus (mão) e capere (tomar posse, agarrar). Sendo assim, um escravo (um dependente) é alguém que foi agarrado, possuído por uma mão que não é a sua. É quando se junta o prefixo ex a mancípio que chegamos a emancipar. Sair, retirar-se. Libertar-se da mão do outro que nos agarra.
Está certo este meu amigo, e pode oferecer comprovação etimológica: emancipar-se é a saída da situação de dependente. Um ato que pode ser brado de um grito só, mas é precedido por um trabalho colossal, doído e desgastante, e seguido por outro de igual tamanho. Porque de uma situação cai-se em outra, e é preciso vigilância para que esse eu que grita por auxílio não nos ensurdeça para o outro. Porque o outro somos nós mesmos refletidos na amplidão do cosmos. É preciso emancipar-se diária e eternamente. Discernir entre o que quer nos agarrar e o que queremos agarrar em nós mesmos, porque é nosso, porque nos pertence, porque em nós vive o conhece-te-a-ti-mesmo como fonte de força e luz, porque é a única forma que temos para nos darmos ao outro da maneira mais verdadeira que podemos. E aceitarmos o que o outro nos dá, sem nos tornarmos escravos, e sem sermos do outro mancípio.