Entre o sarcasmo e a vida

Tenho vários exemplos, na minha grande família que vive do outro lado do Atlântico, das virtudes do saber enciclopédico. Curiosidades da cultura geral foram um prato cheio, anos a fio, diante da lareira da casa na Estrada de Tornada, quando esta ainda era uma estrada e não a rua em que se transformou, quase (inacreditável) no centro das Caldas da Rainha. Os quilômetros que eu andava para chegar à Tália (única livraria de então, onde se compravam os livros de Enid Blyton e o Diário de Notícias) parece que se reduziram a alguns metros. A casa de meus avós resiste incólume, ainda que tenham se silenciado os serões.
Está tudo isso tão longe, no tempo e no espaço. Como se algo em mim tivesse vivido outra vida em pleno século XIX.
Dentro desse saber enciclopédico, saber o que dizem as palavras revestia-se de particular importância. Discutia-se muito; meu avô divagava sobre o sabor diferente do português camoniano, as cartas do king pulavam da mesa para as teclas do piano de minha tia, e eu treinava o prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. Quando estavam todos, avós, tios, tias, primos e adjacências, formava-se mais uma mesa – a discussão política entrava em campo, comentavam-se as últimas de Lisboa, às vezes em voz baixa para não ferir suscetibilidades atentas nas outras mesas. De quando em quando as palavras mereciam um tempo de silêncio – ouvia-se uma baforada de cachimbo aqui, uma cigarrada acolá, mais uma bagaceira no copo que ainda é cedo e um whisky on the rocks para os fortes.
Entre tudo isso, uma prima lia cartas que recebia de um lugar chamado Taizé. Parecia outro mundo, a Maria Alice, embrenhada naqueles papéis que vinham de França. Ensinou-me alguns cânticos, que às vezes congregavam essa família que me aqueceu a infância, unida em volta do piano de minha tia, horas a cantar que não se contavam pelos tempos do relógio. Um fio que guardo cheio de boas lembranças feito pérolas.
Maria Alice vivia dentro de uma atmosfera monástica, embora (salvo erro) fosse funcionária pública em Lisboa. Sobrinha de meu avô, herdou o nome da mãe, mas não seus olhos cor de cinza. Eram “as Alices”, que chegavam sempre juntas, às vezes vítimas daquela espécie de maldade familiar que atinge os melhores, ou os incompreendidos.
Essa maldade foi-me apresentada, pela Maria Alice, como “sarcasmo”. Não sei quantos anos eu tinha, porque é daquelas memórias linguísticas mais antigas. Disse-me que sarcasmo é uma doença, e das mais graves, que é contagiosa e dificilmente tem cura. Quando se adquire, a cura demora, e depende muito mais da força de cada um do que dos remédios dos outros. Anos passados, descobri que ela tinha toda, toda a razão.
Sarcasmo é uma palavra de origem grega, como tantas que nos foram legadas pelos helenos. Deriva de sarx – carne – e criou um verbo. Porque, embora no princípio fosse o verbo, quem primeiro chegou foi o nome. E os nomes, quando transformados em verbos, mudam-se, embrenham-se, infiltram-se e passam a ser dentro de nós coisas que não eram quando em estado de palavra pura, de dicionário drummondiano. Sarx, a carne, criou sarkásein, o arrancar carne. Carne que se arranca através da palavra deve provavelmente ser a mais dolorida, por arrancar-nos da alma a nossa identidade humana, a carne que nos constitui, o ser carnal solidário e fraterno, que antes se agrega do que se arranca de seu semelhante.
Maria Alice apresentou-me a coisas mais importantes – a comunidade Taizé, para onde me voltei durante alguns anos. Taizé apresentou-me a Tereza de Ávila, um antídoto potente ao sarcasmo do mundo, transformado numa oração simples  que por sua vez se transformou em cântico na comunidade francesa. Minha irmã, na curta visita que nos fez nesta semana, e sem saber de nada disso, ressuscitou-me desses tempos antigos, em que a família se reunia e cantava esse mesmo cântico que ela escondeu hoje pela manhã dentro da minha mão, com um sorriso nos seus olhos serenos, onde o sarcasmo nunca encontra morada.
nada te turbe
nada te espante
todo se pasa
Dios no se muda
la paciencia
todo lo alcanza
quien a Dios tiene
nada le falta
solo Dios basta

O cântico, com melodia:

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