Desconfia que quem as enviou quer que seja essa a mensagem. Que ela não o esqueça. E Júlia sabe também que o nome da flor em português fala de ouvir, e sua mente embaralha-se querendo lembrar-se, os primeiros sons da palavra brincando de esconder-se debaixo da sua língua. E Júlia sabe que não deve esquecer as palavras que ouviu, e que esse forget-me-not cantando azul em cima da sua mesa significa que aquilo tudo que ouviu, tudo aquilo que se gravou em sua mente e que não a deixa sossegar e que ele disse junto a seu rosto quando achou que ela dormia, são palavras para não esquecer, para serem guardadas dentro do seu ouvido, em algum recôncavo que as amplifique de vez em quando. Quando ela arriscar esquecer-se, por exemplo, e arriscar perder-se entre casa e trabalho, e arriscar pensar que talvez nada valha a pena e que talvez apenas o nada valha alguma coisa, pouca pouca coisa.
Júlia desvia seu olhar dos papeis à sua frente para as pequenas flores azuis. Tenta lembrar-se do nome outro, que lhe traz a Grécia mas não sabe a razão. Apenas a Grécia, o branco das colunas projetado no céu tão azul quanto o mar atrás de tudo. Mas nenhuma palavra, só imagem e azul. Por que de repente a sua memória fica tao arredia? Por que se esquece de coisas banais, tão banais como o nome de uma flor? E de repente vem-lhe uma necessidade imensa de correr até onde ele está e pedir-lhe colo. Talvez tenha sido o azul. Ou a pequenez de cada flor. Ou o sentir-se desprotegida, a pele nua diante do aço da manhã. Colo, ela pede entredentes. Baixinho, apenas o suficiente para se ouvir dizendo a si mesma a palavra, duas, três vezes. Colo, naquele sentido de ainda verbo latino, e de novo a sua avó segredando-lhe a vida por trás das palavras. Colo no sentido de cultivar, de constituir morada. No sentido de ser cultivada, preparada, o amanho da terra que são os seus ossos, o passar do arado por entre os espaços das suas costelas, o lanço da semente em suas covas, a chuva que faça brotar o plantio. E a colheita, o corte, o arrancar: colo em que ele a cultive e colo em que se abaixe para recolher os frutos quando for hora. E, tendo-a plantado e colhido, que forme sua cabana junto às dunas de areia quente, e que aí estabeleça a sua morada. Sem que os ventos a demovam nem o removam. Dentro de si, que nada precise ser aparência, apenas essa sensação de ser e pertencer, de morar em algum qualquer canto.
O chefe observa-a do outro lado da mesa. Júlia endireita-se na sua cadeira, ajeita-se diante da mesa e coloca seus fones de ouvido. Recomeça o trabalho abandonado a meio, atrasado como ela. Farejando as possibilidades de fuga, como sempre. As flores olham-na com seu olho amarelo. E a palavra surge-lhe leve e sonora dentro da boca seca, fazendo com que seus olhos se fechem como se lhe sentisse o gosto entre os dentes e as gengivas: miosótis.”
Respostas de 2
Puta que pariu, Ana…tá demais…inventa mais…inventa muito!
Que avó você deve ter tido…e que avó você será!
Lindo, lindo, lindo…o texto.
O colo, a semeadura, a colheita, o pertencer e as associações inusitadas e poéticas que você faz…muito bom começar o dia lendo Ana Ventura.
Beijo do amigo
Ivan
Ivan: avó da Júlia…
Bom ter vc me lendo.
Bj