Júlia olha o teto com os olhos abertos, as pálpebras finas cobertas por uma sombra cor de terra, os cílios pesados de tinta. Júlia tem muito cabelo, preso todo ele num rabo de cavalo alto. Suas mãos descansam pesadas em cima do abdome, e de vez em quando o polegar e o indicador da mão direita apertam o dedo do meio da mão esquerda. Júlia tem mãos de dedos longos como enguias. A seu lado, numa pequena mesa, uma jarra e um copo. Os raios de sol brincam com as superfícies transparentes, e o ar brilha ao redor do vidro cheio de água. Não há ruídos em volta, a não ser os passos que de vez em quando ecoam do andar de cima. A parede ao seu lado está inteiramente coberta por prateleiras de madeira escura, e estas de livros. À sua frente ergue-se a reprodução de uma imagem, um anjo que adverte, espada numa mão, balança em desequilíbrio na outra. É firme, o olhar do anjo, e encontra-se de vez em quando com o de Júlia, enquanto esta passeia pelos dourados que o rodeiam. Tudo o que Júlia diz desaparece no ar em volta. Apenas as palavras de P. permanecem em seus ouvidos.
– Não, Júlia. Se você estivesse morta, obviamente não poderíamos ter esta conversa. Você não teria acordado de manhã e vindo até mim, subido as escadas da entrada, aberto a porta do elevador, premido o botão que a trouxe até este sexto andar.
…
– Mas há uma parte do que não se entende que é o que nos faz entender o resto. E acredito que você esteja aqui porque essa parte que não se entende bate à sua porta com insistência, e a maneira que você encontra de despachá-la é acreditar que esteja morta.
…
– Isso não importa, Júlia. Você precisa olhar de frente essa parte que você acredita morta e perdoá-la. Ou perdoar-se, vem a ser o mesmo.
…
– Sim, a sua vinda é um passo.
…
– Tome quanta água quiser. Não precisa pedir licença pra isso. Mas não fuja para dentro do copo, nem acredite que a tímida fuga lhe traga um tempo de trégua.
…
– Trégua, sim. Das circunstâncias da sua vida.
A mão hesita entre tomar o copo entre os dedos e não tomá-lo. Entre sorver um gole de forma rápida e automática e prestar-lhe intensa e absoluta atenção. Fica estacionada no ar, como uma lua cheia por cima do pânico da noite. E volta ao regaço.
– Você percebeu, Júlia? A sua hesitação?
…
– A que a fez largar o copo antes de mesmo de agarrá-lo?
…
– Não se desculpe, é bom que chore. As lágrimas mostram-lhe que não há secura dentro de você. Lembra-se de ter-me dito isso?
…
– E porque não foi ao encontro desse amigo, então, em vez de ter vindo ao meu?
…
– Eu teria tempo para você, a qualquer momento. Você sabe disso. Não sabe? Se quer inventar uma desculpa, é melhor que seja outra.
….
– Mas você não está morta, e a prova está no momento em que eu lhe digo que você está aqui. Eu a ouço. Eu a vejo.
…
– Vejo-a sim, por detrás dessa máscara que você colocou ao acordar, como disse ao chegar. As suas máscaras não são tão densas e opacas a ponto de que não se veja o que escondem.
…
– Faça o exercício. Olhe-se a partir da parte que sente não ter morrido.
Imagem: anjo protetor contra demônio, de Simone Martini.
Respostas de 5
lindo
delicado
deep
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Ana,querida
Diálogo,até que enfim! Muito,muito bom,guria. Se a gente colocasse isso no palco ia se chamar "monólogo".
No silêncio desta madrugada, me dá vontade de fazer a voz da Julia… Mesmo sabendo que este exercício deve ter te custado horas, rabiscos e linhas sobre linhas(adorei as reticências!) que tal me deixar brincar de preencher as lacunas,hein? Chego até a ver a car da Júlia a cada resposta!
Bem, mas agora não vai dar. Deixemos pra volta de POA.
Boa viagem, mestra. E bom trabalho lá na terrinha.
Beijoca com toda LUZ!
Neca Terra
Querida Ana,
Nem sempre o que você escreve se compreende de primeira…você sabe disso, né? Porque além de dizer palavras, você todas as vezes apresenta realmente uma ideia e, vamos combinar, suas ideias estão sempre bem acompanhadas de melodia, cores, sensações e sentimentos…esse exercício eu precisei ler algumas vezes – e olha que nem sou tão burro assim -, não pela complexidade do que apresenta, mas da estrutura do texto em si mas, o mais bacana, é que ler e reler (até realmente entender) foi um grande prazer! Desse modo, está evidente que mesmo às estruturas complexas você empresta a melodia, a estética agradável, a poesia…parabéns…gostei muito.
Ah, sim… qual parte de mim eu matei esta semana?
Ivan
Bom exercício, Neca – preencha! Eu precisei desfazê-la, pra ter paz de espírito! Bjs – lembrarei de vc em POA.
Foi um desafio, essa estrutura fragmentada… Mexeria mais, tivesse tempo, mas outros exercícios já estão aqui, atrasados, não consigo acabá-los. Dias de improdutividade criativa acabam comigo. Parece que a vida vai e eu fico…
Também me pergunto quais partes de mim ando matando e a quais ando parindo. Em plena semana de defesa do parto em casa, estou-me procurando casa pra me parir da maneira que devo.
Beijos, Ivan!