25 de abril de 2014
Mãe:
Este dia, mais do que qualquer outro, é teu. Mais do que o dia dos teus anos, ou o dia de Natal, ou as tantas datas que aprendi a festejar pelas tuas mãos. Este dia, dia maior, devo-o a ti.
Devo-te também o gosto pela preparação das festas, mais do que o gosto pelas festas em si. O gosto pelos livros, e o gosto pelo cheiro dos lugares onde se guardam: as livrarias, as bibliotecas, as salas de leitura, os chãos dos corredores empilhados de livros órfãos de prateleiras. O gosto pelas Ilhas, incomensuráveis dentro do teu coração. Devo-te o gosto de inclinar-me sobre o fogão a pensar nos outros, o gosto de ir às compras a pensar nos outros, o gosto de, antes de em ti, pensares nos outros. Devo-te uma generosidade única, sem medidas nem limites. Essas medidas e limites que às vezes (uns mais que outros, mas todos) não sabemos como medir e limitar dentro de nós. Essas medidas e limites que ora apertam ora afrouxam com exagero. Essas medidas e limites com que te ocupaste a vida toda, e foi nas faltas, nas falhas e nos descompassos que mais me foste ensinamento de entrega e presença. Sem medidas, e sem limites.
Dentro do avião, ao teu encontro há algumas semanas, pensava no quanto quisera ser-te o que me tens sido. Mas agora, hoje, à beira dos 40 anos desse dia de Liberdade que me ensinaste a cantar com os olhos em luz, penso que te sou exatamente o que me foste. Sou aquilo que me desejaste, ainda que, à distância desse desejo, possas olhar-me com olhos inquietos, e não entenderes porque caminhos andam os passos que já não guias. Li e fiz carne da minha carne todas as tuas lições de liberdade, e engendrei dentro de mim uma face que não esmorece, nem se cansa, mas é capaz de dizer chega quando o fim se anuncia. Isso, no lugar que me cabe, é ser livre a olhos plenos.
Talvez te dissesse hoje que terias feito melhor se pensasses mais em ti do que nos outros, mas que sei eu dos caminhos que nos levam aos lugares onde é suposto irmos? Sei, ao ler esta carta da Clarice Lispector que me caiu nas mãos por estes dias, que é tarefa delicada mexer sem cuidado naquilo que somos, ainda que não nos agrade ou ainda que não saibamos o que fazer com essas coisas desconhecidas que assomam dentro de nós sem aviso nem pedido. Dizias-me, da última vez, coisa semelhante. E o teu olhar refletia-se sério nas paredes imaculadas à nossa volta.
Dizias-me, com palavras do teu âmago, isto que me diz Clarice: até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. Não sei quais defeitos quiseste cortar em ti, e talvez tenhas pensado, num súbito, que o teu amor pelas festas, e pela sua preparação, o amor pelos livros e pela face livre da verdade, esse amor pelos outros antes que o amor por ti mesma, fossem defeitos. Mas pergunto-te, como sei terás perguntado ao espelho diante de ti: será em algum tempo o amor defeito?
Talvez possas ainda ter pensado que o teu amor à liberdade pudesse revestir-se dessas peles com que se aderem os defeitos, e talvez tenhas pensado que deverias ser e viver como outras mulheres viviam e davam de crescer a seus filhos. Talvez pensasses não ser aquilo que esperavam de ti. E talvez não fosses. Talvez nunca tenhas sido. E eu agradeço-te por, mesmo a meio desse meio em que não te decidiste a ser o que querias ser, teres me legado esta sensação interna que me diz “sê” antes de me dizer “considera”.
25 de abril, sempre.
Foto de Moreno Ribeiro