O justo lugar do outro

Acabo de ler um artigo no The New York Times sobre crack e metanfetamina. Um estudo de Carl Hart, onde se constata que, ao se apresentar uma alternativa econômica a usuários de crack, muitos adictos tendem a preferir a alternativa, derrubando por terra a teoria de que o dependente de crack faria qualquer coisa pela próxima pedra.

Hart conclui que o desenvolvimento da dependência é uma questão fortemente ambiental, uma questão do lugar e da situação social do indivíduo. Mais uma voz que engrossa o discurso de que o que se precisa, em termos também políticos, são profundas remodelações na estrutura da sociedade, na maneira como nos organizamos e compartilhamos entre nós bens e serviços, e não medidas punitivas ou repressoras.

O que me chamou a atenção, e posso expandir em outras direções, é essa constatação da necessidade de serem oferecidas/existirem alternativas.

Alternativa é uma palavra curiosa. Desmembra-se sem demoras, separando o alter do nativa. Há anos que gosto da palavra alter – esse outro que não sou eu, esse conhecimento que me chega através da existência do outro, a corrente que migra entre dois lugares/seres: sempre há um outro além de mim quando o mundo se veste de alter. A solução (se pensarmos que são necessárias alternativas ao que aí está) está, portanto, ligada a um outro que não sou eu, e a a mim mesma quando estou no lugar de “outro” de alguém.

Nativa chega-nos, diretamente e pra variar, do latim: é o original, inato e natural, é o nascido, o ser que começa a existir. Só posso concluir que alternativa seja algo que nasce e é original e inato de um outro. Quando se nos é oferecido/existe, é uma bênção, uma dádiva, um presente sublime. Não vamos sozinhos a lugar algum. Precisamos de mãos que nos façam crescer, e quando o outro as estende, nasce a alternativa. Como é uma via de mão dupla, também o outro precisa da nossa mão estendida, para que possa crescer. Nós somos a alternativa do outro, e o outro é a nossa alternativa.

Porém, para que a alternativa possa cumprir esse seu objetivo (de mudar o rumo, o foco, a atividade, o vínculo, a direção das coisas) é preciso que três qualidades se manifestem (além da do interesse, que é básica e sem ela não há nem começo). Sem essas três qualidades, ou os movimentos são inócuos ou, pior, danosos. A primeira dessas três qualidades é a justiça; a segunda, a fraternidade; e a terceira, o altruísmo.

Se a justiça não rege o movimento que fazemos na direção do outro, levando-lhe o que nasce dentro de nós com clareza, precisão e verdade, criamos uma teia silenciosa e invisível à sua volta, uma teia ardilosa e insidiosa, que oprime, que queima, que magoa. A justiça demanda olho claro e ouvido acordado; demanda que nos ouçamos e àquilo que nos move; demanda que estejamos atentos ao que isso que nasce em nós poderá vir a provocar no outro, e o quanto é justo provocar no outro alguma coisa, se depois não a sustentarmos quando, quanto e como for necessário ao outro. A justiça está ligada a responsabilidade, e a um senso de respeito que ultrapassa quaisquer outras questões.

Esse respeito básico existe se quem vemos no outro é igual a quem vemos em nós: ou seja, nosso irmão. Quando não é a fraternidade que rege esse movimento do estender a mão, o outro distancia-se porque não alcança essa estatura que o torna nosso frater. Sem a luz e a percepção de irmandade, o outro é pouco, e nós somos pouco também, presos a esse pesado solo ilusório que nos faz julgar, supor e determinar sem de fato sabermos do que falamos. Se a fraternidade está presente, há uma doçura e uma sensibilidade nos movimentos que nos impedem de estraçalharmos o outro no que ele tem de mais primordial, que é o ser igual a nós mesmos. Mesmo inconscientes, é a nós mesmos que estraçalhamos.

Nessa troca entre dois iguais, o altruísmo ergue-se como faca de dois gumes. A sua contraparte, o egoísmo, vem-lhe colada e amalgamada. Toda ação comporta o olho no outro e o olho em nós mesmos. As alternativas, quando oferecidas com os olhos mais postos nos outros do que em nós mesmos, lançam-se desenvoltas, naturais, porque antes de pensarem/sentirem em si mesmas, nas suas tranquilidades, nas suas salvaguardas, nos seus confortos, nas suas prioridades, pensam/sentem com o sentimento do outro. Aí, sim, são alternativas a esse mundo que tanto dizemos querer ver transformado, enquanto o reeditamos igualmente duro e distante dentro de nós mesmos e do que vive ao nosso redor.

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