Alfacar é uma pequena vila perto de Granada, na Espanha. Pouco mais de 4000 habitantes, casas antigas cheias das sombras e do sol andaluz, rodeada de enebros, alcornoques e madroños – árvores com sotaque castelhano em terras que já foram mouras, as últimas da península a capitular à reconquista católica. Seus campos testemunharam os últimos passos de Federico García Lorca e daqueles que caminhavam com ele. Todos fuzilados pela falange franquista no caminho que leva de Alfacar a Viznar. No fim de 2009, um juiz espanhol, de sobrenome Garzón, abriu o processo de exumação da vala comum em que se supôs durante anos estivessem seus restos mortais. Não se encontraram, e persistiu a sensação de que a família já o teria feito, e Lorca estaria, apesar de tudo, enterrado em Granada.
Há mais de uma coincidência entre aquele dia em que soaram vozes de morte perto do Guadalquivir e o dia de hoje. 1936 foi o último ano de Lorca e hoje comemoram-se 36 anos da Revolução Portuguesa. Ele, vitima da ditadura franquista; ela, rompendo as correntes da ditadura salazarista que perdurou por longos 41 anos no país vizinho. Segunda coincidência: ontem, em Madrid, grandes manifestações trouxeram às ruas a mesma Espanha dividida da década de 70 – a Falange de um lado, os movimentos populares de outro. O motivo tem raízes fundas e profundas, raízes feridas e mal cicatrizadas, semeadas no coração da Guerra Civil e do governo de Francisco Franco. O mesmo juiz Garzón é o motivo, e o seu (mais uma vez) movimento de iluminar e tentar redimir o passado, exumando campas para encontrar os desaparecidos políticos. Responde neste momento a um processo por prevaricação enquanto funcionário público que contraria os interesses do estado, por tentar levantar informações e dados sobre casos anistiados. Há mais manifestações que o apoiam por toda a Europa, mas esta, de ontem, sacudiu com ardor as principais vias da capital espanhola.
Hoje, dia 25 de abril, toca o telefone às 6 da manhã. Já o dia vai adiantado do outro lado do Atlântico, e eu sei que ouvirei a senha de todos os anos: “25 de abril…”, à qual responderei sem demora, como é costume, “Sempre!”. “O povo é quem mais ordena” vem logo a seguir, num Ary dos Santos imortalizado na letra da música que Lisboa entoará logo mais, agrupada na manifestação que se preparou e que descerá, como sempre, pelas avenidas que imortalizam a Liberdade. Há 36 anos que o país entra em festa neste dia, ainda que haja quem não goste, ainda que haja quem se ressinta, ainda que haja quem quisesse tudo muito diferente – o dia da Liberdade resiste teimoso e ganha todas as ruas e vielas, desdobra-se numa profusão de cravos vermelhos em todas as lapelas.
Este “sempre” deste ano tem, porém, um gosto diferente. Há um Garzón a quem ser solidário, e há a escalada conservadora fazendo vítimas por todo o continente. O “sempre” de outros anos respondia pela celebração, pela gratidão de se poder gritar “a terra a quem a trabalha”, “o povo unido jamais será vencido” e por podermos olhar nos olhos de outros que também se lembram de que a utopia é possível e viveu entre nós. Mas este ano esse “sempre” volta a assumir o tom do “no pasarán” de Dolores Ibarruri, um “no pasarán” que ecoou e se agitou em centenas de faixas pelas ruas de Madrid ontem, 24 de abril de 2010, quantos anos depois da Pasionaria o ter gritado pela primeira vez. “Sempre”, hoje, porque há quem queira esquecer com mais força do que queria esquecer-se antes, porque há quem queira que não nos lembremos com mais força do que queria antes, e porque há quem sucumba ao medo de dizer aquilo que precisa ser dito, muito mais do que precisava ser dito antes, ainda que pareça, ainda que seja e ainda que se repita impossível. Por isso, antes de fechar os olhos para preparar o dia de amanhã – 25 de Abril: sempre.