É preciso que saibas: não existem duas coisas iguais. Podem parecer-te, às vezes, muito semelhantes. Podem parecer-te quase a mesma coisa. Podem lembrar-te fortemente algo que esqueceras. E tanto pode ser que exista de fato algo em comum, como é possível o contrário.
Ora repara nestas palavras, que me ofereceram hoje a meio de uma conversa, e que me fizeram pensar em ti e daí a vontade de escrever-te. (Escrever-te, repara, nesse duplo sentido que te ofereço intencional, de dirigir-te umas palavras assim quaisquer umas e de, com a minha mão nua, percorrer-te o corpo até preenchê-lo com as palavras que não ouves.) Ora repara, dizia eu, nas palavras que me ofereceram. Cerúleo. Ceroulas. Uma poderá parecer-te exótica e desconhecida, a outra antiquada e comum como a chuva. Ou não, porque poderás quem sabe conhecer as duas. Poderás até pensar: “de certa incontestável forma, têm estas palavras um parentesco que se perde na escuridão dos tempos…” Através do teu pensamento, podes chegar onde quiseres.
Assim é, também, com as pessoas que conheces. Um alguém que te apresentem pode levar-te imediatamente a pensar em outro alguém; o teu pensamento pode tecer-te a ti e a ele um cenário tão perfeito, que te convenças que entre essas pessoas, tu e ele, existe um fio que só tu vês e que as liga e as enfeita e as torna inseparáveis dentro do mundo do teu pensamento. Sendo tu uma dessas pessoas, poderás pensar que esse que vês à tua frente é aquilo que estava escrito nas páginas abertas do teu destino. Ou poderá ser como cerúleo e ceroulas, essas duas palavras que sem querer me ofereceram. Sem te deteres diante das pessoas como não te deténs diante das palavras, poderão parecer-te umas e outras tudo aquilo que queiras que te pareçam. Até o que não são. Corres, deixa que te alerte, um grande e terrível risco. E deixa-me ainda dizer-te que há três coisas de que precisas para escapares aos enganos.
Precisas, ouve bem, de cuidado, cautela e prudência. Podes pensar que sejam a mesma coisa dita de três formas diferentes, mas são três aspectos de uma mesma atitude, em si mesmos dessemelhantes – e se te lembrares de que não existem duas coisas iguais, saberás que não existem, nunca, duas palavras iguais. Nem duas maneiras iguais de se dizer uma mesma palavra.
O cuidado faz-te pensar no outro para que não o magoes; a cautela faz-te pensar em ti para que não te magoes; a prudência faz-te pensar no ser nascido do vosso encontro, para que também ele não se magoe. Já vês como as coisas precisam ser olhadas de três formas. Pelo menos.
Repara agora, outra vez, naquelas duas palavras. Cerúleo e ceroulas. Mastiga-as. Pronuncia-as em voz alta. Deixa que preencham os espaços vazios do teu cérebro (são tantos). Quando começares a pensar, e com isso perderes a conexão com o sabor e o vento que as palavras têm dentro de si, poderás incorrer no erro de imaginá-las aparentadas. Ou talvez não penses nada, porque te deixaste levar pela lenta suavidade desse rio que são as palavras. Tanto melhor. Mas, se pensaste, deixa-me que esclareça:
não são aparentadas, nem no tempo, nem na geografia, nem naqueles que as entoaram na vez primeira. Cerúleo é o que vês quando olhas para cima a campo aberto: cerúleo é o céu. Como esse que encabeça esta carta que te escrevo: a fotografia do céu do meu dia hoje. O teu olhar para cima vê tudo o que é cerúleo, vê caelum, vê céu. Não fossem os povos do Lácio, talvez tivéssemos uma palavra outra, menos bonita, para ex-clamar ao olhar o que está acima de nós.
Ceroulas são peças de roupa. Quase diríamos ninguém mais as usar, mas isso só se não estivermos em terras frias, que agradecem essas calças por baixo das calças. Ceroulas são indumentárias árabes, dos povos do deserto, que as usavam e usam por baixo de todo o resto da roupa que usam para se protegerem da areia, do sol inclemente, do frio gelado da noite. Saruil é a sua origem, tão distante do caelum da terra de Cícero quanto nós das formas de pensamento de ambos. (Também do árabe, para quem pensou nisso, vêm as cenouras, a quem os antigos chamavam sannarias.) Ainda assim, tão longe uns dos outros, o nosso pensamento imagina-lhes a proximidade, e sem a curiosidade e a cautela e o cuidado e a prudência, deixaria de saber o que agora sabe, ainda que pareça inútil. Nunca se sabe o que vai ser útil ou inútil na vida. Por isso é que é preciso deixar todas as portas abertas, até aquelas por onde costuma entrar a adaga, a mão sorrateira que rouba, o sorriso falso que engana. Tudo aberto, ouve e guarda: guarda com cuidado, com cautela e com prudência, olhos atentos aos movimentos cerúleos. Eles indicar-te-ão o caminho.