Dentre os vários livros deixados por Calvino, Psychopannychia chamou a minha atenção há uns meses atrás. Essa porção de letras pareceu-me saborosa: os dois y destacando-se no todo, os dois n a meio, o crepitar dos ch alimentando o resto… Antes de pensar no que fosse, desenhei-lhe a forma manuscrita, pus-me a pensar em que pensaria ele ao decidir que esse desenho no papel seria o título de seu segundo livro. Mas logo a mente (que engana) mais a razão (que tudo quer explicar) me atrapalharam nesse devaneio. O “pânico da alma”, que talvez se insinue a uma primeira e desinformada vista, logo se desfaz ao localizar Calvino no tempo – avançam sobre nós as paisagens que seus sequazes trilharam divulgando a nova fé, enche-se de neblina o horizonte da paixão huguenote, perseguida, execrada e assassinada em noites das quais São Bartolomeu é apenas um exemplo. Almas em pânico, aquelas?!
Descubro entretanto um dicionário: inglês-latim online. Oferece tudo (ou quase), o bendito: a primeira derivação, a segunda, a grega, se a houver, e ainda a raiz primeva rastreada em direção ao indo-europeu. Não bastasse, localiza vocábulos derivados dessa raiz (e das outras, se eu quiser) em pelo menos 20 línguas com derivação semelhante; ao escolher uma delas, ganho de bandeja uma lista de tudo o que derivou da derivação inicial. É um assombro. Eu penso, clico e o mundo revela-se palavra.
Vejo que não, que psychopannychia nada tem de pânico, mas, ora vejam, de vigília – mais especificamente, “vigília da alma”. Gostei da ideia: nada de ter a alma em pânico, antes vigilante. Calvino ficou assim, cutucando-me com seu título, atiçando-me a curiosidade para saber o que achava ele mesmo dessa história. Muitos saberão bastante sobre protestantismo, mas eu católica apostólica romana a minha lusitana infância inteira (com direito a uma salve rainha incomodando meu ser infantil que não achava nada interessante aquela história dos filhos degredados de Eva suplicando neste vale de lágrimas…), não sei de nada mesmo. Apesar das aulas a preparar, dos livros que comprei a ler, do relatório a escrever, da última mania em forma de série seduzindo-me ali da caixa da 3ª temporada… vou ocupar-me com este assunto de última hora, que provavelmente há de ser importante daqui a algumas horas, ou dias, ou semanas, quando a minha alma se for deitar. Coisa que a mesma jamais fará, se for considerar o que diz Calvino, já que a alma não se deita, nem dorme, nem se apaga, nem se extingue. Nem hoje, nem no dia da morte de seu invólucro.
Calvino opôs-se aos aniquilacionistas: aqueles que creem, por bíblicos a + b, que as almas dos perdidos estariam não só perdidas, mas seriam extintas para todo o sempre. Não acreditam que um deus cristão misericordioso pudesse deixar almas ardendo no calor dos infernos, por isso antes a chamada “segunda morte” após a física, o aniquilamento sem volta. O inferno seria como a condição de pré-nascido, portanto inexistente, porque ainda não existiu, e por isso mesmo não existe (!). Lutero, antes dele (e, depois dele, dele discordando), garantiu o “estado inconsciente dos mortos”, todos eles aguardando no não-saber, no não-viver o dia do Julgamento Final – não em vigília, mas em sono total. Calvino não acreditava nisso – para ele, estaremos todos vigilantes esperando o fim dos tempos.
Canso-me rapidamente das leituras teológicas, tantas idas e vindas e voltas e tornas. Não tenho nada contra elas, é que o que eu quero é entender a palavra e não me sentir demasiado ignorante. Os primeiros parágrafos do livro de Calvino interessam-me – seria ele um Padre Vieira lá no seu tempo e espaço? Descubro que acredita-se que tenha proferido cerca de 4000 sermões (!), ainda que deles só se conservem 1500; aos 30 anos já tinha a cabeça grisalha, o corpo magro; comia pouco, dormia menos, mas nada disso lhe retirava o enorme esforço intelectual a que se dedicava (com o consequente gasto, imagino, de energia). Saúde? Frágil: artrite, cálculos renais, gota, hemorróidas, e profundas, frequentes e extensas enxaquecas, a que seu biógrafo atribui sua fama de irascível. Associava a prodigiosa memória que tinha a uma poderosa capacidade de observação. Morreu aos 55 anos, rodeado de seus discípulos. Interessante, este Jean Calvin.
O querido dicionário me encandeia (palavra bonita, em linha direta das candeias que alumiavam as noites esfomeadas do Alentejo): “pan-nychis”, do grego, significa “passar a noite sem dormir”. Logo imagino (achando que li isso em algum lugar, o que pode até ser verdade, mas mais provavelmente não o é) que talvez Pã sofresse de insônia, e que talvez por isso tivesse decidido inspirar medo e pânico aos outros, só para se divertir à custa alheia no meio dessas noites sem dormir. O certo é que nós todos, insônios de plantão, podemos, para não nos repetirmos, conversar logo mais sobre a nossa pannychia, e aposentar de vez a sempiterna insônia.
Enquanto isso, nossas almas vigilantes vagarão pelos tempos dos tempos, alertas quanto ao fim, às vezes em pânico ao descobrir o quão longe está o que até ontem parecia ao nosso lado. Talvez o pânico, se equilibrado e enquadrado, nos mantenha acesos, alertas, coesos conosco mesmo. Nada que nos paralise, mas que nos espete a agulha fina do incômodo e nos faça avançar e ficar mais perto do fim. A parte inevitável da vida.
Ainda Pannychia… coisas interessantes para ver, ou ideias que dão pano pra mangas…
Um ritual pannychidos – um réquiem para as almas mortas, Igreja Ortodoxa Grega
Mais coros bizantinos, para quem tiver gostado
E por fim o dicionário!