Hoje foi dia de mutirão no Terreiro Pena Vermelha. Dia de mutirão é dia de unidade. Transcende, porque precisa transcender, os limites rasos do tempo e do espaço. Unitas, a palavra latina de onde deriva a nossa palavra unidade, refere-se a tudo aquilo que, se dividido, corre o risco de destruir ou alterar a própria essência. Por isso é tão importante buscar-se uma unidade, mesmo à distância, mesmo na não-presença física: para que não destruamos ou alteremos a essência.
As línguas, como as pessoas e os povos, evoluem. Absorvem coisas daqui e dali, se movimentam e modificam, como seres vivos que são. Ao falarmos, falam em nós íberos, celtas, fenícios, cartagineses, godos, visigodos, árabes, latinos; dizemos cafuné, fubá, cacimba, cachaça, inhame, camundongo, miçanga e zumbi – e resgatamos de longe toda a diversidade africana que nos habita. Buscamos no mandarim o chá, nas indianas marati e malaiala o bambu e a canja, tomamos emprestados os pires à Malásia e os biombos às terras do sol nascente. Somos feitos de muitos povos, todos eles nossos ancestrais, que honramos mesmo sem saber que o fazemos, ao pronunciar-lhes as palavras. Quem pode duvidar do quanto somos plurais e diversos?
A palavra mutirão é uma palavra tupi. Deriva de potyrom, e este, por sua vez, de pô, que é mão. Mutirão pede soma: potyrom significa todas as mãos juntas. Não pede pensamentos nem palavras, nem opiniões nem discursos complexos – mutirão pede as mãos que trabalham juntas, e constroem e abrem caminhos e plantam e colhem e semeiam e tornam a colher.
Quando eu cheguei, já estava o mutirão fechado (porque tudo o que se faz junto precisa de abertura e fechamento, para não deixar ninguém à deriva ou à toa), mas a sua presença, dessas mãos todas em unidade de trabalho, ecoava por todos os lados. Os que estiveram de corpo e alma presentes, e os que estiveram em alma, dando sustentação e força às mãos físicas que puderam estar – todos se respiram nesta mata que nos diz “cheguem, cheguem mais, estamos à vossa espera”.
Neste domingo de Lua Cheia, não poderia haver nada de mais importante para fazer. A mata canta feliz e a chuva tamborila no telhado. Como dizemos sempre que trabalhamos: somos gratos, Senhor, por quanto nos dás.