Na época em que eu fumava, tive um amigo que me apresentou a uns cigarrinhos curtos e finos que vinham da Índia, num pacotinho pequeno em forma de cone. Nada mais eram que uma folha de tabaco enrolada e presa com um fiozinho de linha colorida, esses “beedies” que na altura se compravam em Marrocos. Foi uma época intensa, essa. Por obra do destino, eu me via junto a um grupo de pessoas que se reunia para ler e ouvir poesia, e que, a meio dessa atmosfera densa, enfumaçada e sombria, fazia silêncios que duravam a eternidade que nos separa dos bandos de cavalos soltos pelas praias da península ibérica. Não sei do que eu mais gostava, se das palavras ou se do silêncio que ampliava o que elas diziam. Ouvia-se o riscar dos fósforos, o gorjeio das garrafas quando se esvaziam, e de repente mais uns versos de tantos poetas que, reparo, não me couberam na memória. João Cabral vem-me daquela época, em alguns poucos versos que, quando reaparecem, trazem de volta, como um presente, todos os encontros em um só, e eu agora sozinha, porque todos quase já se foram, ou porque se foram de fato, ou porque eu me fui deles e não posso mais reencontrá-los. Reinvento-os na solidão da minha mesa, cada um de seus olhares de pálpebras fechadas.
Esse amigo, que se foi há anos, lia Lorca e Valéry como se lhe habitasse as veias, e a mim me acontecia aquilo que alguns chamam de alumbramento. Alumbravam-me as rimas, o ritmo, as palavras de escolha certeira, os que avançavam pelo que era concreto e os que se perdiam no que não era. Apareciam os surrealistas, não se discutiam nem se interpretavam. Vinham os imagéticos, os duros como pedras, os incisivos como tempestades de areia dentro dos olhos.
Ficou-me dessa época a vontade de ouvir e não dizer nada, essa substância volátil que em nossos dias é tão rara, que são os silenciamentos da alma que foi e se sabe tocada. Relendo João Cabral, descubro-lhe novos poemas, novos versos, novas imagens, percebo-lhe a tarefa imposta – a mais dura, a mais difícil. E penso em como será que sobreviveríamos se eles não estivessem em guarda para nos salvar da torpeza que é a insensibilidade humana.
Não havia convites, nem saraus a serem combinados, arranjados, preparados. Era a palavra pura que se capturava num instante para soltá-la logo a seguir. Um dia certo na semana, uma casa onde ir, e mais nada. De onde apareciam todos aqueles amantes da poesia, ou como, eu não sei – talvez combinassem, afinal, eu era menina demais para perceber o que a vida adulta demandava, tinha todo o tempo do meu mundo ao meu dispor e hoje vejo como nada disso era fácil, ainda que parecesse. Mas a lembrança ficou dessa forma, ela própria também um alumbramento, e acompanha-me nesta tarde, que prepara o derramar-se de hoje à noite, quando João Cabral nos visitar e com ele a legião de poetas que vivem do outro lado à espera de que os chamemos. Em silêncio, com cuidado, de olhos fechados e alma aberta.
Uma resposta
Queria linda…Adoro quando vc escreve, hehe! Pena que não tenho tido tempo de ler tudo o que gostaria…Viva a Ana de torneira aberta…derramando lindas palavras em nossos ouvidos, almas e corações…Beijo grande, te admiro muuuito e te adoro tbém…! Katita…a Botter