De todas as saudades, as mais imponderáveis são as que começam quando ainda se vive o que representam. Penso com isso nas flores amarelas das azedinhas nas bermas dos caminhos, nas giestas a anunciarem a primavera nas estradas do Alentejo, nas margaridas-do-mar em sua contemplação indiferente do horizonte atlântico. Como eco de passos nas ruas de um bairro secular à meia noite, entram sorrateiras, estendem-se nas redes que encontram, constroem em silêncio seus caminhos em nós, e tudo isso sem que ainda lhes percebamos a existência.
Há os silêncios a meio das conversas. E as conversas a meio dos silêncios. O que não é dito porque não é preciso que se diga, e o que se diz porque é preciso o ar encher-se de embriões de saudade.
Mais ou menos como aconteceu em uma tarde, igual a todas as tardes que reaparecem diante dos olhos, não como se fossem ontem, mas como sendo dias do hoje, eternos agora.
Nessa tarde, que já se anuncia distante porque as saudades estreitam os ponteiros do relógio, há uma mulher sentada à sombra dos beirais da casa. Ao seu lado direito, à distância de oito passos, há duas cadeiras de reclinar vazias. O sol atravessa os espaços que formam as folhas da oliveira próxima. As cadeiras murmuram como se preenchidas. As suas vozes trinam nos bicos dos pássaros acima delas. Brilham no reflexo do sol nas nuvens. Tornam-se matéria na linha do queixo da mulher sentada ao lado da mulher que vê. Na linha do queixo, na curva dos lábios, abertos nesse grito a dizer que nem mesmo quando morremos nos vamos.
A mulher que vê, por não conseguir ver o que vê, fecha os olhos, e deixa que lhe suba garganta acima uma lágrima chamada gratidão. Nada lhe transborda os olhos, porque não sabe se o mundo terá tamanho para o tamanho do que vê. Nessa linha de queixo, nesses lábios em curva, vive ela mesma nas feições da outra, e nesta vivem as feições de quem partiu anos antes. Nesse encontro de tão poucas palavras há um apertar de mãos que as dispensam. São como eternas companheiras, com nada que haja além delas mesmas. Existem sem palavras neste espaço que, tanto quanto as separa, tanto as entrelaça.
Esta é a terra que se agarra à mulher primeira com a força mais tenaz. Porque a quer para si, e porque ela morre-se por dentro em partes. Logo há de atravessar o oceano com o sabor do luto por entre os dentes, um luto que é antes de ser anunciado. Despedaça-se em aberturas d’água, porque é o fim de um começo novo, porque se afasta, dessa cidade e desse mundo que é tão seu que não o consegue conter dentro de si. Afasta-se do rio que a reflete, do mar que a acolhe, da luz que a ilumina, impalpável sobre essa cidade única que alcança o mundo da sua sombra.
E enquanto fecha os olhos e tenta medir o tamanho das coisas inalcançáveis, o tempo que se encolhe e escapa das suas mãos (umas vezes é muito, outras escasso), pede que a vida seja simples, e mais nada. Que as raízes se agarrem ao solo que se tenha sob os pés. Quer seja rocha, quer seja areia, quer seja água, quer seja qualquer coisa onde a vida germine quando parecer terminada.
Imagem – Margarida Pereira