Há tempos que ando com vontade de escrever a respeito de uma palavra que me abalroou uns meses atrás – fiquei atônita olhando para ela, mal acreditando no que me fazia pensar. Chegou-me às mãos via os gregos e chama-se sphalmatos. Associada a perigo, aplica-se (ou aplicava-se) às situações de caída ou desgraça. E isto a propósito de que? De duas coisas.
Uma, a crônica de Clarice Lispector que decidi reler um dia desses, uma das suas mais bonitas: “Estado de graça”. Deu-me a ideia, há alguns anos, de um daqueles exercícios que por mais que se repitam mais prazer dão: neste caso, ir ao encontro de palavras derivadas a partir de uma determinada raiz, descobrindo às vezes parentes e significados ímpares, num brainstorming linguístico que adquire maior sentido à medida que avança no espaço. Como o tal estado de graça, que os gregos readquiriam, para evitar a queda (ou a desgraça), somando à palavra o prefixo a, que tudo nega. Portanto , asphalmatos – aquilo que impede a queda ou a desgraça.
“Desgraça” faz parte do campo semântico que se abre com a palavra “graça”, um espaço de limites longínquos, cheio de sutilezas e encantos. Graça é aquilo que criança faz, e nos faz sorrir (mais do que rir); graça é aquele presentinho simpático que recebemos de quem menos esperávamos, e que nos provoca o “que graça!”. “Graça” oferece-nos palavras tão diferentes quanto gracioso e engraçado; gratidão e ingrato; agradecido e desgraçado. Estar em “estado de graça” é um pouco levitar do duro chão da existência, ser alçado àquelas alturas a que as paixões às vezes nos remetem (e das quais, quando caímos em desgraça, ganhamos um tombo proporcional ao grau anterior do estado oposto).
As coisas que são “de graça”, contrariando todas as lógicas capitalistas, inclusive as bem intencionadas, são aquelas que não têm preço e que por isso mesmo nos deixam a alma naquele já dito estado de levitação. Aquelas coisas que chegam assim, do nada, sem que se esperasse ou previsse, e de repente se nos oferecem, leves, lisas e ternas. Um brinde da vida.
Pois os gregos sabiam disso. Usavam tanto asphalmatos que, por economia da língua, tornou-se asphaltos, acabando por batizar aquilo que, para dezenas de civilizações, dos próprios gregos aos sumérios, passando pelos assírios, pelos babilônios e pelos egípcios, serviu para impedir que as coisas caíssem (literalmente) e se desgraçassem. Noé usou asphaltos para calafetar sua (nossa) Arca. Literalmente, ainda em grego, está cunhado como “aquilo que evita a caída”.
Isso fez-me pensar, e num volteio repentino fiquei matutando se não nos estará faltando justamente aquilo que negamos tanto tempo – no plano concreto, palpável, o sempre-dito asfalto (assim, na grafia que conhecemos, sem o ph que o original grego oferece), aquilo que pode impedir que os nossos caminhos se desintegrem, se esboroem, criem buracos e levantem poeiras que nos intoxicam e nublam a visão clara do que está à nossa frente – ou às nossas costas. No plano das ideias e dos afetos, que foi para onde esta história me catapultou de fato, é como se nos escapasse o estado de graça, porque negamos, através do distanciamento, a nossa proximidade; porque perdemos a cordialidade; porque entendemos que a luta precede o entendimento e que a construção do nosso sentido parte da negação do sentido alheio, e não do seu caráter complementar.
Sinto falta, nestes últimos tempos, não só de conhecer as tantas diferentes pessoas que moram hoje à minha volta, e encontrá-las nas festas simples onde dinheiro não era moeda, mas também de re-conhecer aquelas que já estão aqui há muito – sem que a falta de tempo, de espaço, de disponibilidade ou de desprendimento nos impeçam de levitar, achar graça sobretudo em nós mesmos e ser gratos. Clarice, nos momentos da depressão que sucedeu o incêndio que quase a matou, queixava-se da solidão das coisas do mundo, e refugiou-se nessa solidão que ajudou a construir. Não gostaria que lhe repetíssemos esses passos.