O mapa da cidade em que nasci, Caldas da Rainha, é cheio dessas encruzilhadas surpreendentes a que chamamos (ao menos, em Portugal) becos. Beco do Forno, Beco do Estragado, Beco do Arneiro, Beco da Fé, Beco da Fonte, Beco do Borralho. Não são lugares de passagem, mas de ficagem. De entrar e sair pelo mesmo lugar. Não conduzem, são caminhos sem saída. Exatamente como alguns dos textos que me sucedem a meio do processo de criar e que não vão para lugar algum, sequer pertencem. Apenas aparecem e ficam, e me deixam estar quieta a observar detalhes de uma cidade interna que se constrói aos poucos, da memória dos tempos, da vida que pulsa por baixo do que é aparência. É de becos cheios de letras que a minha escrita tem se alimentado ultimamente.
E porque a palavra beco não agrada a muitos (já percebi), decidi chamar a esse processo de side writing. Assim, em inglês, que é como pensei no assunto, e porque não consigo chegar a nenhuma tradução que me deixe satisfeita. Side writing pode ter um efeito extraordinário sobre a criação de texto. Da seguinte forma.
Imagine-se submerso num ambiente qualquer de ficção – sendo, portanto, ficcional, situa-se naquela linha nem tão imaginária entre a sanidade e a loucura. As coisas são, mas não existem. As pessoas vivem, mas ninguém ainda as vê. As situações acontecem, mas não são palpáveis. E por aí vai.
Você está, então, imerso nesse ambiente paralelo à sua vida normal, aquela que inclui (existentes, visíveis e palpáveis) filhos, companheiro, amigos, supermercado, mecânico, almoço e jantar, roupa, vassoura, escritório, vizinhos, ruas, dentista, escola e esse looongo etcétera que você já desenhou para você mesmo. Esse ambiente outro, o da ficção, que se insinua por entre as esquinas dessa vida de fato, curva a sua vida como uma bola arremessada com efeito; faz com que o movimento usual se desvie um tudo nada, mas o suficiente para transformar-se em estado de alerta, inclinando imprevisível e irremediavelmente tudo o que você vive. Gerando angústia e premência. E assim se vai, o dia inteiro perambulando de uma janela a outra, inconformadas ambas de que não se lhes preste atenção plena.
Buscando solução para viver nesses dois universos sem prejuízo a nenhum deles, tentam-se formas de organização: estabelecem-se horários, rotinas, métodos e locais para a revelação completa dessa vida quase e tão real quanto a outra. Porque é isso que o universo ficcional quer: revelar-se e ser revelado. A todo custo. E de repente, naquele minuto tão esperado e aguardado, de repente de repente de repente não há nada dentro dessa vida para ser dito. Assim que há tempo, desaparece. Há só um branco, muito bem distribuído entre mente, papel e tela. E fica a ficção prejudicada, as personagens de boca aberta sem saberem as próprias falas, as ondas do mar paradas, os ciclistas espantados porque as suas pernas não pedalam. O coração, que se queria calmo e satisfeito, num turbilhão aflito.
É nessa hora, descubro nos últimos tempos, que é preciso sair da estrada principal e procurar os viecu – as vias pequenas, os becos, os caminhos que parecem não levar a lugar algum. Por isso esses side writing, por isso sair do arquivo principal em que se sucedem os capítulos da história, e ganhar tempo com detalhes e recortes tão ínfimos quanto uma carta de amor que se escreve, a resposta que se recebe, o arrumar de uma mala, uma página de diário, cenas do cotidiano de personagens que se nos colam ao corpo como visgo.
Os textos que se produzem nessa bola de efeito que decido chamar de side writing ficam assim, quietinhos. Lado a lado com a autoestrada em que a ficção se transformou. Alimentam-na, permitem que respire, que se afaste de si mesma para perceber-se melhor. Quase como se a deitássemos no divã, e puséssemos suas personagens em fila diante da porta do analista. Esperam ajuda para serem descobertas, para entenderem as situações todas que lhes tiram véus e cortinas da frente. Cada texto que pula dos meus dedos para a página é, creio, uma sessão bem sucedida.