Este é “O abraço”, de Egon Schiele. O austríaco, expressionista e ácido Schiele. Os seus humanos transfigurados incomodam mais do que as figuras floreadas de seu contemporâneo Klimt, e é por causa desse incômodo básico que este abraço aflora na minha memória.
Datado de 1917, “O abraço” poderia chamar-se “O amplexo”, e diria o mesmo, já que um amplexo é um abraço. A sua etimologia oferece mais possibilidades de resignificação. Ao contrário de braço, que nasce do latino brachium e é nome usado ainda na anatomia básica, amplexo nasce da junção entre os verbos amplexus e plecto.
O primeiro responde por uma série de atividades que, eventualmente, nossos braços podem executar: compreender, conter, abarcar, abranger. Todas elas são ações amplas, dessas em que abrimos os braços a mais não poder para compreender/conter/abarcar/abranger o mundo que se nos oferece. Elejo o compreender como meu preferido, porque de todos os desejos que povoam o mundo, o da compreensão talvez seja o que mais nos torne humanos.
Plecto refere-se a outra ação, que faz com que esses braços, abertos à compreensão, se dobrem, verguem, enlacem, teçam. Isto faz o abraço: com o desejo imenso de compreendê-lo, os braços dobram-se e enlaçam o outro. Tecem-se os fios do encontro. Ao abraçar, trazemos o outro para dentro de nós, e de repente ele faz parte, é indissociável, e seu destino é também o nosso.
Abraços distantes, entre corpos que evitam o encostar um no outro, não são exatamente abraços, estão mais para tateadas do terreno alheio ou recolhimento do próprio. Um abraço apertado é coisa diferente. Começa pelo encostar de duas batidas cardíacas, esse lugar onde mora de um lado o amor incondicional, do outro o mais puro egoísmo. Depende de como cuidamos dele.
Imagine agora que esse abraço, que já fez corações se tocarem, se aprofunde mais, e permita que um outro centro de energia entre em contato com o seu abraçante. Ali, atrás do estômago e abaixo do diafragma, eis que se tocam dois sóis internos – dois plexos solares. Ali, nesse lugar, é onde as emoções se digerem, onde se transformam medo em aceitação, ódio em amor, raiva em compaixão. No abraço, a digestão é compartilhada, e torna-se mais leve.
Não sei o quanto conseguimos perceber essa troca de energias tão sutil. Creio que muito, muito pouco. Em parte porque não nos permitimos abraços tão íntimos, em parte porque andamos desatentos, com pouca disponibilidade para olhar o que provocamos no outro e o que o outro provoca em nós. E, sem olhar, como ver? Não vemos.
Sinto-me próxima de David, e creio que todos nós estamos, respeitadas as diferenças da brutalidade física e palpável. Estamos próximos nas nossas pequenas mutilações diárias. Nos braços que arrancamos aos outros e que, sem prestarmos a atenção devida, e porque estamos entorpecidos por nós mesmos, jogamos em qualquer canto que possa escondê-los. Porque não sabemos o que fazer com esses pequenos cadáveres.
Penso nos braços que nos são arrancados, nessas dores de corpos ausentes, nessa privação de ação que é o braço roubado. Mutilações do dia a dia que impedem que concretizemos em ação a vontade que expressa a palavra. A conversa que não permitimos, a resposta que negamos, as incisões sangrando as falas dos outros, cada uma das pequenas recusas pelas que somos responsáveis, as pequenas desconsiderações da dor, da aspiração e da necessidade do outro.
E eu penso, nesse David de braço transfigurado como se pintado por Schiele, no quanto nos transformamos, aos poucos e a cada dia, num simulacro do que somos, numa mancha que cada vez se distingue menos dessa massa civilizatória a caminho da incivilidade. Numa marcha não tão lenta, em meio a essas desumanidades que são as mutilações, as indelicadezas e as desatenções, o mundo sucumbe. E, com ele, nós mesmos. Que nos salve Schiele, e nos salvem todos aqueles que estendem os abraços e nos compreendem dentro de si, e nos elevam e protegem da intempérie do mundo.